segunda-feira, 5 de março de 2012



Onze horas. Madalena se perfuma. Coloca fora tudo o que falta dentro. Brincos longos e dourados. As unhas muito vermelhas. Uma saia curta, provocante. A linha tênue que separa a meretriz da virgem voluptuosa . No rosto, passa pó, cores muitas, de adereço, alguns sorrisos. Os seios fartos de Madalena, dependurados, no gozo da preparação, aguardam o convite. Ela então coloca o salto. E os seios se renovam. Mais altos,na ponta, duas libélulas famintas espreitam toda a casa. Por fim são vestidos . Os dois se fartam na falta de compostura do decote. Tal como Madalena eles não tem vergonha, nasceram assim, gostam de aparecer. Enquanto ela se arruma o lugar vai se embriagando de cheiro de perfume. Madalena exala sexo enquanto se perfuma. Ela fica bonita sim, não para ela, mas para os homens. Pra que se embelezar para si mesma !?Esse papel de platéia ela já delegou a outros a muito tempo. De muito já basta ficar em casa sozinha. Ela não, ela se prepara para ser oferecida, tal como banquete, aos homens que cobiçam seu corpo. Se olha mais uma vez. Olha e re-olha. O que será que as amigas irão pensar ? Causaria ela inveja? Talvez . Mas não é assim, fácil desse jeito. De vulgar ela não tem nada, mas por dentro, tudo que ela esconde é que são os seus segredos.
Madalena gosta de ter esse poder, de despertar essa libido. De encher de sangue esses corpos cavernosos que talvez ela nunca conheça. Mas despertá-los, isso sim que é com ela. Onze e meia. Quase pronta, ela sai na rua. Ao descer a escada do prédio o salto freme barulhos que despertam sua estima. Felicidade !? Alegria é mais próximo, euforia é o ponto. O frenesi de todas aquelas possibilidades embriaga Madalena. Alguns passos na rua vazia. Onde estarão seus homens? Onde estará seu grande público a apreciar seu corpo e desejar seu sexo ? O prédio das amigas se aproxima. Na mente, silêncio. Por um momento ela não se entende. Como aquela angustia tão feia podia invadir um corpo tão belo ? O porteiro dá-lhe passagem. Ela sorri e depois cala, entra no elevador. Ali tudo é um banho de luz e espelhos. Seus sentidos estariam felizes se não fosse pelo silêncio. Ela não gosta do silêncio. O silêncio conta coisas que ela não suporta ouvir. 1° andar, 2° andar, a máquina parte. O barulho é o mesmo dos tristes metrôs da Sé. Do trem da infância. Impaciente, ela começa um tiquetaque compulsivo contra a parede de lata. As unhas vermelhas no metal prateado, o barulho ritmado exterioriza a agonia que o coração não ousa dizer. No espelho, ela vê seus belos olhos. Pintados a lápis, os traços muito bem definidos, persas, indianos, não se sabe. Madalena olha mais uma vez e vê uma menina bonita. Lembra de novo da infância. Da casa feia, daquelas horas de dor, intermináveis, e feias. Espelho. Quão belos são seus lábios. Quem os beijaria essa noite? O homem dos seus sonhos ? Quantos homens ela teria de beijar até encontrar o homem certo ? Madalena não sabe. Ela se lembra da mãe, que com um tapa na boca a colocou para fora de casa na idade de 15 anos. Mas seus cabelos são sedosos. Toda mulher deveria querer ter os cabelos de Madalena. Castanhos, levemente ondulados, como as moças da televisão. Que homem aquela noite a levaria para casa, a pegaria no colo e que faria pela primeira vez carinho naqueles cabelos nunca amados ? Ela lembra do pai ausente, do pai que nunca disse se ela era bela ou mesmo filha. Os olhos ensaiam derramar-se, mas se contém. É preciso não estragar a maquiagem. Ponto. A máquina para. Madalena não gostou do elevador, ou talvez foi do silêncio.
No apartamento, as fêmeas todas no cio. O cheiro de álcool anestesia seu perfume de mulher. É preciso participar do grupo. Em bando, a chance de sucesso é maior. Ela fala muito, gesticula. Com o copo na mão profere malabarismos, circula, rodeia, beberica. Olha de relance os brincos da rival, deprecia mentalmente os sapatos da outra, a saia mais curta que a sua desperta uma certa inveja. São todas ricas, meninas de família, conhecidas, muito bem cuidadas, muito bem amadas. Não sofreram como Madalena. São belas por fora, e como ela, desejam os homens. Não desejam pelo sexo, pelo fim, mas pela simples banalidade de serem desejadas e depois esquecidas. Não são prostitutas, meretrizes, nada do tipo. São apenas, vazias. Jogam conversa fora, não sabem nada da vida, só querem se divertir. Mas não Madalena, ela está ali movida por esses pedacinhos de ódio silenciados. Do amor que não veio. Do sonho que não deu em nada. Dessa falta, desse oceano que quases que é a sua vida. Seja o que for , era melhor não ter nascido. Entre o fervor das matrizes na sala ela repara em algumas alianças. E se lembra do ex-namorado. Sempre ausente, sempre frio. 5 horas de viagem para receber, quando muito, um abraço indiferente. Se lembra dos outros, muitos, ex-namorados. E da ausência de telefonemas. Da ausência de sorrisos. Da ausência de ouvir o nome dela na boca do homem que ela amava. Madalena espera demais. Sempre foi assim. Muitos beijos, abraços , carinhos, , horas de conversa. Sempre muito efusiva, prestativa, eufórica. E nada em troca. Nunca .Nem mesmo ela sabe se é assim para receber algo de volta, ou se nasceu besta por convenção. No vazio , ela espera. Mais uma noite, ela espera o homem de seus sonhos. Ela sabe que ele está lá fora. Há muito tempo ela desistiu dela mesma, e hoje só busca por ele. Alguns a chamariam de ridícula. Ela se intitula sonhadora, revolucionária. Tantos homens no mundo, e qual seria o seu !? Por isso ela paquera. Tenta . Com todos. Com uma certa inocência, como a criança esquecida no orfanato, procurando por seu pedaço de pão. Então ela flerta. No supermercado, no restaurante, na internet, na rua. Ela troca olhares, provocações, convites auspiciosos. Qual seria o homem de sua vida !? Onde estaria ele !? De noite, Madalena chora. Entre uma busca e outra , ela chora. Chora, sempre, inexoravelmente, ela chora. E sonha também. No seu quarto, quietinha. Sonhar tira ela por um momento do mundo. Mas as meninas se aprontam. Taxi. Estrada. Álcool. Estrada. Barulho. Festa. Levemente embriagada a via crucis começa. O contorno das sombras esconde as imperfeições do seu rosto, o torpor de álcool, as da sua alma. Os sentidos começam a falhar, entre um drink e outro ela se embriaga, se consome. A festa acontece, madrugada a dentro. Ela sente saudade de casa. Mas é preciso dançar. Os homens se aproximam. Ali ela é invulnerável. O dinheiro que faltou no fim do mês. As brigas com a mãe. As matérias reprovadas na faculdade. As angustias insuportáveis no silêncio dos jantares solitários nas quartas feiras a noite. Nada disso importa. Hoje é Sábado, ela está bonita, perfumada, ela é desejada. Recebe elogios. Dança. Se oferece. E beija. É preciso procurar. Qual seria o homem dos seus sonhos ? Numa busca alucinada por bocas e volumes repentinos ela se enfiltra. O homem de barba por fazer, olhar sedutor, pele morena, falando no celular. Outro mais velho , perfumado, que disse que ela era a mulher mais linda da festa. O loiro que lhe entregou seu telefone. O garoto da academia que ela sempre desejou. Ali a festa acontece. Todos os homens são dela. Madalena se sente importante, imponente, bela. Se embriaga nesse simulacro. E bebe. Descontroladamente. Bebe para esquecer, bebe para lembrar. Já não deseja mais seu príncipe encantado. Para que apenas um homem se ela já tem todos que deseja? Então ela chora no banheiro, e muda de ideia. Vomita. Se limpa, refaz a maquiagem. Sente frio. Ela lembra dos namorados. Sente medo. Tudo que ela queria agora é um namorado. Então ela se sente só. Mais uma vez, o homem dos seus sonhos não veio. O espetáculo acabou . O perfume se foi, os seios dormiram , o vestido amassou. Ela volta pra casa. Entra no carro. A amiga um pouco embriagada toma a direção. Os olhos cansados, de brilhar, de chorar e de esperar, se fecham. As idéias girando na sua cabeça. O coração apertadinho, encolhido no peito. Mais do que nunca, ela sente falta. O carro se vai pela estrada. Devagarinho, ela vai pegando no sono. Silenciosamente. Esse mesmo silêncio que de dia dói, de noite faz repousar. E ela imagina como seria, se o seu homem estivesse ali, fazendo carinho, olhando pra ela, enquanto ela dormia, o sono vai pesando, a dor vai indo embora, sangue e álcool se misturam mais um pouco, Madalena dorme.
Barulho. Lá longe na estrada. Maria dá um pulo na cama. Na casa simples, humilde, no contorno da cidade. É madrugada. Que foi meu amor !? Não sei, eu ouvi um barulho. Um beijo na testa. José abre a janela. Deve ser carro, capotado, no meio da estrada. Volte a dormir Maria, amanha a gente vê o que aconteceu. Os beijos estalam , no rosto, no corpo todo. No silêncio da madrugada ela dorme. Dorme dentro de um abraço. Maria da Silva acorda cedo. 5 horas está de pé. Ela merece esse sono gostoso, com seu amado. Pela manhã, faz o café, termina de corrigir as provas das crianças. De manhã, trabalha. Dá aula na escola da prefeitura. Quer ser professora, quer ter 3 filhos. A tarde cuida das crianças da dona Helenice. Come qualquer coisa que sobra na casa e ruma tardezinha, para a faculdade. Estuda até as onze da noite. Pega a condução pública e volta para casa. Para encontrar o José, que trabalhou o dia todo pensando nela. Maria economiza o dinheiro do mês , se vira no apertadinho. Paga os estudos. Quer ser mulher de verdade,quer casar de branco, com seu homem de verdade. Foi só um barulho na estrada. Maria precisa voltar a dormir. Amanhã tem mais trabalho, jornada dura, puxada, muito sol e calor. Mas não agora. Ela se vira na cama e passa a mão nos cabelos do José. Lembra de como eles se conheceram. Da rosa que ele trás todo dia, porque sabe que ela gosta de flor. Eles mesmo que não tem muita coisa. Mas têm um ao outro. Se amam e ela é a mulher da vida dele. No relógio, falta ainda alguns minutos. Abraçadinhos, eles dormem o sono merecido. Nos braços do seu namorado, Maria está no céu. Madalena também.