porquê já era demais que durava aquela demora. Na
ante sala a mulher esperava com o corpo contraído. O relógio parecia atrasar o
tempo. Ela era tomada de uma angústia
muda preenchendo-a por dentro, empalhando-a com uma apatia que ela não conhecia
antes. Já sofrera por tantos anos que não fazia mais diferença esperar por mais
quinze minutos ou por um dia inteiro. Fechou os olhos e contraiu as mãos. Procurava
imaginar o que fazia o médico, do outro lado do porta. O sabor da resposta a
agradaria. Depois de se debater muda em silêncio por tanto tempo tinha enfim
tomado coragem de procurar o psiquiatra. Tinha preconceitos, muitos. Não queria
ser chamada de louca. Não queria que soubessem desta estranha decisão. Estava
de óculos escuros e por trás deles certificou-se que ninguém na rua podia olhar
pra dentro da clínica e testemunhar a mulher em seu último ato de desespero.
Para não sucumbir ao peso da sua própria alma concentrou-se na sua respiração de
modo a suprimir a ansiedade. Respirava em pulsos fortes e ritmados, oxigenando
o cérebro o mais que pudesse, de forma a relaxar os músculos e também o
espírito. Foi sendo consumida nessa meditação forçada enquanto seu corpo
lentamente entrava em transe a medida que o oxigênio inundava o cérebro. A
mulher e o tempo, a mulher e o espaço. No mais, tudo era silêncio. Foi quando
de repente ouviu a porta do consultório se abrir e seu nome ser chamado. Ela entrou, não disse nada, sentou-se em
frente a doutora. Com os olhos semi cerrados e os ouvidos muito abertos preparava-se
para ouvir o diagnóstico. Sabia que não haveria de dizer nada. Sabia que a
conversa que tinha tido com a médica minutos antes seria suficiente para
apontar-lhe uma direção a medida que algum tratamento fosse iniciado. Havia se
alimentado dessa esperança para tornar a vida finalmente possível. A mulher
forte, a mulher determinada andou de cabeça erguida até a cadeira onde
sentou-se para ouvir sua sentença.
-
Lúcia, depois de
analisar e pensar muito sobre o seu caso eu cheguei a uma conclusão. A notícia
que eu tenho pra te dar não é a das melhores. Mas eu quero que fique tranquila
porque nós iremos superar isso juntas, por isso nada é motivo de medo.
-
Mas o que é que
eu tenho, doutora ?
-
Você sofre de Paixão,
Lúcia. E não é de uma paixão qualquer, é aquela mais selvagem de todas, da pior
espécie que pode atacar um ser humano.
-
E o que é que
isso significa?
-
Significa que
você está predestinada a ser apaixonada pela vida. Significa que o teu espírito
freme de uma chama violenta que fará com que todas as coisas a tua volta sejam
feitas a imagem e semelhança da natureza de uma alma forte e selvagem.
Significa que os teus desejos são profundos e a tua essência é como as grandes
baleias azuis que precisam das águas profundas para acasalarem e terem seus
filhotes. As águas rasas de uma existência superficial te sufocam , te atolam e
te deixam morta nas praias desertas das tuas horas vazias. E então você fica
assim: letárgica, paralisada - porque o
teu espírito tem fome de mais coisas que não são deste mundo. Lúcia, meu bem, a paixão começa assim: no início é tênue e pode quase passar
despercebida. Começa com um senso de beleza mais apurado, com perguntas para as
quais não se tem resposta, tudo de uma forma ingênua e inofensiva. Ninguém
geralmente teme os seus primeiros sinais. Começa com um olhar triste sobre a
natureza monótona das casas e dos carros e das ruas. Tudo de repente passa a
ser insuficiente, porque a tua paixão, depois de ter começado a queimar, vai te
exigir mais do que a realidade pode oferecer. As tuas experiências passam a ter
necessidade de um misticismo exacerbado porque senão passam a ser monótonas e
isto as torna insuportáveis. Você começa a querer mais do mundo e a isso você
não chamará de insatisfação, mas de uma angústia criadora e de uma força
impulsionadora de uma vida. E deste ponto em diante a paixão começará a cegar
seus olhos. O senso estético começa a se apurar, e com ele um perfeccionismo
que passará a corroer seus dias. Em todos os detalhes você buscará uma
experiência que nunca se deu antes. Você comecará a fazer planos para que o seu
futuro seja não aquele que a vida te daria de bom grado, mas aquele que você
exige como recompensa por ser uma boa pessoa. Para agradar ao mundo você
passará a ser rude contigo mesma. Você sacrificará o teu corpo e o teu sangue
em nome da realização dos teus sonhos e a isso chamará a vitória tua de cada
dia. A respiração então passa a se tornar ofegante em alguns momentos. Você
exigirá uma água mais azul, uma temperatura mais amena, pessoas mais
agradáveis, lugares mais distantes. Nada, nada absolutamente te deixará
satisfeita. O teu sentimento de mérito te fará desejar mais e melhor. Comecarás
a ser mais severa consigo mesma e é esta severidade que roubará a casca dourada
dos teus dias. Grandes planos estarão ao teu horizonte e você alcancará todos
eles. Você cavalgará até o futuro montada em elefantes dourados, gigantes,
pisando por cima de tudo, deixando apenas um rastro e destruindo as pequenas
plantinhas que ficam pelo caminho. O teu corpo se revestirá de um manto
invisível de glória e tu te tornarás indestrutível. A paixão vai continuar
queimando enquanto houver paixão. Fisicamente sentirás um ardor no peito, um
incômodo. É o teu espírito que diz: tenho fome. Não há mais o que fazer então.
Alguns exercícios físicos podem ajudar, um banho frio, uma ou outra hora em
silêncio, com os olhos cerrados. Mas estes serão todos paliativos. Em verdade a
tua paixão exigirá de ti um esforço sobre-humano. Tu lutarás. Não há outro
meio. Tu te agararrás à vida com os braços e a pernas e com os dentes também.
Porque caso te tornes apática o peso exagerado da paixão desabará sobre ti e
isto será a tua morte. Por isso Lúcia, eu te desejo coragem e força, eu te
desejo sabedoria, eu te desejo ventos favoráveis para que possa velejar segura
nesses mares abertos de pura, profunda e violenta, paixão.
Lúcia não conseguira acreditar no que acabara de
ouvir, estava imersa em puro êxtase de
viver. Para certificar-se de que estava acordada esfregou mais uma vez os
olhos, passou a mão no rosto e nos cabelos. Na sua frente de súbito a porta se abriu. Ela ainda estava
sentada na antesala, de onde nunca havia saído. Ajustou o foco da visão,
colocou o óculos. Recompôs-se.
-
Senhora Lúcia
Maria Aparecida.
(…)
-
Por favor pode se
sentar.
(…)
-
Olha, o que a
senhora tem é depressão. Vou te passar aqui uma receita, pode começar a tomar
hoje mesmo. Clonazepam, 2 mg , duas vezes ao dia.