domingo, 1 de janeiro de 2017

Lúcia


porquê já era demais que durava aquela demora. Na ante sala a mulher esperava com o corpo contraído. O relógio parecia atrasar o tempo.  Ela era tomada de uma angústia muda preenchendo-a por dentro, empalhando-a com uma apatia que ela não conhecia antes. Já sofrera por tantos anos que não fazia mais diferença esperar por mais quinze minutos ou por um dia inteiro. Fechou os olhos e contraiu as mãos. Procurava imaginar o que fazia o médico, do outro lado do porta. O sabor da resposta a agradaria. Depois de se debater muda em silêncio por tanto tempo tinha enfim tomado coragem de procurar o psiquiatra. Tinha preconceitos, muitos. Não queria ser chamada de louca. Não queria que soubessem desta estranha decisão. Estava de óculos escuros e por trás deles certificou-se que ninguém na rua podia olhar pra dentro da clínica e testemunhar a mulher em seu último ato de desespero. Para não sucumbir ao peso da sua própria alma concentrou-se na sua respiração de modo a suprimir a ansiedade. Respirava em pulsos fortes e ritmados, oxigenando o cérebro o mais que pudesse, de forma a relaxar os músculos e também o espírito. Foi sendo consumida nessa meditação forçada enquanto seu corpo lentamente entrava em transe a medida que o oxigênio inundava o cérebro. A mulher e o tempo, a mulher e o espaço. No mais, tudo era silêncio. Foi quando de repente ouviu a porta do consultório se abrir e seu nome ser chamado.  Ela entrou, não disse nada, sentou-se em frente a doutora. Com os olhos semi cerrados e os ouvidos muito abertos preparava-se para ouvir o diagnóstico. Sabia que não haveria de dizer nada. Sabia que a conversa que tinha tido com a médica minutos antes seria suficiente para apontar-lhe uma direção a medida que algum tratamento fosse iniciado. Havia se alimentado dessa esperança para tornar a vida finalmente possível. A mulher forte, a mulher determinada andou de cabeça erguida até a cadeira onde sentou-se para ouvir sua sentença.

-       Lúcia, depois de analisar e pensar muito sobre o seu caso eu cheguei a uma conclusão. A notícia que eu tenho pra te dar não é a das melhores. Mas eu quero que fique tranquila porque nós iremos superar isso juntas, por isso nada é motivo de medo.
-       Mas o que é que eu tenho, doutora ?
-       Você sofre de Paixão, Lúcia. E não é de uma paixão qualquer, é aquela mais selvagem de todas, da pior espécie que pode atacar um ser humano.
-       E o que é que isso significa?
-       Significa que você está predestinada a ser apaixonada pela vida. Significa que o teu espírito freme de uma chama violenta que fará com que todas as coisas a tua volta sejam feitas a imagem e semelhança da natureza de uma alma forte e selvagem. Significa que os teus desejos são profundos e a tua essência é como as grandes baleias azuis que precisam das águas profundas para acasalarem e terem seus filhotes. As águas rasas de uma existência superficial te sufocam , te atolam e te deixam morta nas praias desertas das tuas horas vazias. E então você fica assim: letárgica, paralisada -  porque o teu espírito tem fome de mais coisas que não são deste mundo. Lúcia, meu bem,  a paixão começa assim:  no início é tênue e pode quase passar despercebida. Começa com um senso de beleza mais apurado, com perguntas para as quais não se tem resposta, tudo de uma forma ingênua e inofensiva. Ninguém geralmente teme os seus primeiros sinais. Começa com um olhar triste sobre a natureza monótona das casas e dos carros e das ruas. Tudo de repente passa a ser insuficiente, porque a tua paixão, depois de ter começado a queimar, vai te exigir mais do que a realidade pode oferecer. As tuas experiências passam a ter necessidade de um misticismo exacerbado porque senão passam a ser monótonas e isto as torna insuportáveis. Você começa a querer mais do mundo e a isso você não chamará de insatisfação, mas de uma angústia criadora e de uma força impulsionadora de uma vida. E deste ponto em diante a paixão começará a cegar seus olhos. O senso estético começa a se apurar, e com ele um perfeccionismo que passará a corroer seus dias. Em todos os detalhes você buscará uma experiência que nunca se deu antes. Você comecará a fazer planos para que o seu futuro seja não aquele que a vida te daria de bom grado, mas aquele que você exige como recompensa por ser uma boa pessoa. Para agradar ao mundo você passará a ser rude contigo mesma. Você sacrificará o teu corpo e o teu sangue em nome da realização dos teus sonhos e a isso chamará a vitória tua de cada dia. A respiração então passa a se tornar ofegante em alguns momentos. Você exigirá uma água mais azul, uma temperatura mais amena, pessoas mais agradáveis, lugares mais distantes. Nada, nada absolutamente te deixará satisfeita. O teu sentimento de mérito te fará desejar mais e melhor. Comecarás a ser mais severa consigo mesma e é esta severidade que roubará a casca dourada dos teus dias. Grandes planos estarão ao teu horizonte e você alcancará todos eles. Você cavalgará até o futuro montada em elefantes dourados, gigantes, pisando por cima de tudo, deixando apenas um rastro e destruindo as pequenas plantinhas que ficam pelo caminho. O teu corpo se revestirá de um manto invisível de glória e tu te tornarás indestrutível. A paixão vai continuar queimando enquanto houver paixão. Fisicamente sentirás um ardor no peito, um incômodo. É o teu espírito que diz: tenho fome. Não há mais o que fazer então. Alguns exercícios físicos podem ajudar, um banho frio, uma ou outra hora em silêncio, com os olhos cerrados. Mas estes serão todos paliativos. Em verdade a tua paixão exigirá de ti um esforço sobre-humano. Tu lutarás. Não há outro meio. Tu te agararrás à vida com os braços e a pernas e com os dentes também. Porque caso te tornes apática o peso exagerado da paixão desabará sobre ti e isto será a tua morte. Por isso Lúcia, eu te desejo coragem e força, eu te desejo sabedoria, eu te desejo ventos favoráveis para que possa velejar segura nesses mares abertos de pura, profunda e violenta, paixão. 

Lúcia não conseguira acreditar no que acabara de ouvir, estava imersa em puro  êxtase de viver. Para certificar-se de que estava acordada esfregou mais uma vez os olhos, passou a mão no rosto e nos cabelos. Na sua frente  de súbito a porta se abriu. Ela ainda estava sentada na antesala, de onde nunca havia saído. Ajustou o foco da visão, colocou o óculos. Recompôs-se.
-       Senhora Lúcia Maria Aparecida.
(…)
-       Por favor pode se sentar.
(…)
-       Olha, o que a senhora tem é depressão. Vou te passar aqui uma receita, pode começar a tomar hoje mesmo. Clonazepam, 2 mg , duas vezes ao dia.