domingo, 24 de fevereiro de 2019

O castelo




Toda uma externalização… Uma dicotomia, interrompida por soluços parasitários. Porque tudo que existe do lado de dentro acaba de uma forma ou de outra se esparramando um pouco pro lado de fora. Uma vez eu tive um sonho, eu chegava bem perto do muro de um castelo. Mas o portão de entrada era desconhecido e os muros eram altos, e o interior do castelo era de meu profundo interesse e curiosidade. Eu dava voltas e voltas sempre mirando os muros altos se estendendo até as nuvens sumindo dentro do céu. Eu rodeava como rodeio agora com estas palavras, o meu atraso em dizer. Essa minha preparação, esse útero imaginário onde eu guardo minhas palavras recém fecundadas, essa maturação de tudo que é por enquanto semente e busca uma forma para sair do lado de fora sem tomar por um susto demasiado grande a plateia, os ouvintes e quem sabe eu mesmo. Suspeito que todo o viver seja isso, uma camuflagem, uma ilusão necessária por baixo da qual escondemos todas as nossas mentiras, que postas juntas desde as bases de suas fundações constituam a grande verdade. Verdade essa que não nos pode ser mostrada de uma vez porque enlouqueceríamos. Nós temos chamado de lucidez o que é a nossa dissimulação diária e perpétua, nós temos aprendido a dissimular assim que deixamos de ser crianças. Crescer é isto, é o aprendizado de todas as distorções e disfarces que tornam a nossa vida possível. Para escapar da dor de estar vivo nós nos chamamos de muitas coisas. Nós nos ocupamos e nos distraímos por isso não é de nosso agrado nos olharmos muito tempo fixamente nem estarmos sozinhos, não é de nosso agrado porque poderia ser que nos fizesse acordar de uma vez por todas da mentira por detrás da qual nos escondemos. E não saberíamos como principiar de outro modo, não saberíamos viver sem disfarce, por isso também  não é de nosso agrado que andemos sem roupas pela rua. O nosso pudor original é esse, pra que escapemos da vergonha do nosso sexo, que é a fonte criadora de nossa raça… Mas, o que é que eu queria dizer mesmo? Vejo que estou mais uma vez dissimulando. Mas é melhor mesmo principiar assim, sem demonstrar nenhum interesse. Toda vez que eu quero me aproximar do castelo ele todo se reorganiza e recomeça um novo plano, para que eu não o perceba, para que eu não seja vitorioso em encontrar o portão de entrada. É preciso, no entanto, que o castelo não saiba que me interessa entrar e desta forma não esconda de mim a porta. Mas isto eu também já tentei, e foi em vão. Por mais que eu ande pelas suas redondezas, sem nada procurar, o portão também não me aparece. É inútil. Penso que talvez o castelo, ou seus moradores, possam mágica ou realmente ler meus pensamentos. É preciso que eu esqueça de quem eu era quando estava tentando entrar, é preciso que eu me esqueça de mim mesmo, de todas as minhas aspirações e planos e cobiças, é preciso que eu me limpe do desejo sujo de entrar pelos portões que eu mesmo nunca vi. Mas então, quem serei eu se eu não quiser mais entrar? Encontrar a porta tinha sido até agora a minha motivação para vida. As estruturas que que me sustentavam como um ser vivo, ainda que tremendo de dor, mas vivo, cheio de medo e de sangue, mas ainda assim vivo, vibrando, tremendo, vivo… Qual seria então a finalidade do plano? A total morte da vontade? A total entrega? De quantas partes de mim eu teria que me desfazer, quantos membros meus eu teria que cortar, friamente, serrar com a faca e o serrote para não ser percebido? Como eu poderia me reduzir a uma unidade mínima para não ser mais reconhecido como indivíduo possuidor daquele desejo? Quão fundo eu teria que cavar dentro das minhas veias para achar onde se escondia a malícia deflagradora de querer achar a porta? Será, que, talvez depois de despido de toda intenção, será que talvez depois de ouvir o som das minhas muralhas e pontes internas se arrebentando... será que somente ao beber do último fio fino da vida é que de surpresa em minha frente uma porta apareceria, revestida de luz e um convite a mim seria feito em uma voz celestial “Vem, que eu te mostrarei as coisas que devem acontecer depois destas?” Mas eu temo que até mesmo esta última esperança me fizesse ser percebido e descoberto, como um vagalume que estivesse sempre acesso e estivesse pra sempre preso dentro da noite. Resolvi então ficar do lado de fora, sentado na grama, de costas pros muros e olhando o horizonte. Quem sabe talvez também pudesse ser possível viver do lado de fora e não entrar nunca? Quem sabe eu já esteja vivendo dentro de um castelo maior que eu desconheço? A vontade de querer entrar foi o primeiro vírus que me infectou e do qual eu tenho que me curar. Pra me libertar do desejo de querer estar dentro de algum lugar. Ou talvez o castelo exista dessa forma para que eu possa aprender alguma coisa com ele? Talvez a porta não exista nunca, e seja apenas uma fortaleza sem porta… Talvez ela seja vazia por dentro ? Talvez exista somente do lado de fora e simplesmente não exista por dentro? Que tolice a nossa é pensar que tudo o que existe tem de ter dois lados… Só porque a nossa experiência sensorial nos diz que assim deve ser… Ou quem sabe o castelo seja apenas metáfora de coisa maior? … quem sabe do amor em si ? É tão mais fácil amar as pessoas inofensivas e indefesas, aquelas que por pura ingenuidade e pureza de espírito nunca sonharam com a existência de uma porta. É preciso não se saber que está sendo amado para ser amado, é preciso não procurar pela porta do amor para encontrá-la.


quarta-feira, 10 de maio de 2017

A maldição Karnal

“...fazia frio naquele fim de tarde do mês de maio do ano de 2012. O dia no hospital tinha sido pesado. Dentro do carro, no caminho de volta,  eu vim pensando na vida, não só na minha, mas na dos outros também. Era um sentimento estranho que eu nunca tinha percebido ter antes. Uma espécie de premonição do que estava pra acontecer nas próximas horas. Cheguei em casa, joguei a bolsa no sofá, deixei as panelas em fogo baixo esquentando a janta e fui tomar um banho. Um costume que eu tenho é deixar a televisão ligada enquanto vou pro chuveiro.  Não gosto do barulho da casa vazia. Eu fui deixando as minhas preocupações de lado enquanto a água quente me acalmava. Lavei a cabeça, passei condicionador, enxuguei-me e enrolei-me na toalha , como faço sempre. Quando abri a porta que dava pro quarto eu pude perceber ao fundo a voz grossa e imponente de um homem que falava na televisão. Assim só com a toalha enrolada na altura dos seios eu saí para o quarto e comecei a ser atraída pelo ar de autoridade que vinha da entonação viril do homem que falava. Ele usava um terno bege e uma camisa social branca com o primeiro botão aberto. Não era bonito. Não era feio também, mas me atraía. Eu sei apenas que me atraía, diria melhor, me intrigava.  Sentei-me na cama e comecei a sentir-me mais confortável com aquela presença masculina que agora alcançava meus sentidos. E porque eu gostasse do tom do discurso comecei a ouvir prestando mais atenção. Ele falava de Deus.  Mas não falava de um Deus apenas. Não falava do Deus que até então eu conhecia, singular e bom, e também austero quando necessário. Ele não falava do Deus que eu havia aprendido ser Deus. Não falava sobre o Deus que me ensinaram nas primeiras aulas de catequese, no auge dos meus 11 anos, no Colégio Santa Dorotéia. Não falava do Deus compassivo, amoroso e justo, falava entretanto de várias personalidades de um mesmo Deus se alterando em diversos momentos da história. Falava de um Deus que era diferente a medida que os homens era também diferentes. Discorria sobre um criador com uma personalidade quase humana, mudando de ideia e de humor conforme lhe fosse aprazível. Talvez, eu pensei, não fosse uma personalidade quase humana. Mas humana de fato. Talvez, e apenas talvez, aquele Deus sobre o qual o homem discorria fosse apenas uma projeção dos medos, desejos e aspirações não de Deus, mas dos homens mesmo.
“...não de Deus, mas dos homens mesmo...” Quando pensei isto um susto se apoderou de mim. Quem estava sendo eu então, naquele momento? Ou melhor, quem eu havia sido antes, todo este tempo ? Como é que eu nunca tinha sido capaz de traçar sozinha essa linha lógica que correlacionava os dois fatos? Como é que eu não tinha sido capaz de sozinha compreender Deus como a obra prima da criação humana e não o contrário ? E não o contrário, Maria Lúcia, nunca o contrário ! Era um misto de medo e prazer, euforia e indignação. Era de uma curiosidade mansa que o meu espírito todo se desdobrava como as pétalas de uma flor nascendo também se desdobram e se voltam para fora, encarando uma natureza verde, uma  natureza viva, encarando aquilo que parecia finalmente ser o coração selvagem da vida. Era o âmago de uma experiência que só pode ser genuína para o vivente que a saboreia de súbito: crua, palpitando como a artéria exposta onde corre o sangue vermelho, o sangue escarlate. Vivo e vermelho como o coração se apresentando pela primeira vez diante do vazio. Mas, se eu era como esta flor, abrindo-se, eu desabrochava para dentro ou para fora? Qual e onde era esse dentro-fora que os limites do meu espírito buscavam empurrar? Eu fazia força mas não sabia em que direção, e afinal de contas,  que paredes eram estas contra as quais eu fazia força? Eu que me julgava conhecedora de mim e do mundo, eu que me julgava conhecedora de todas as verdades, eu que tinha tido ate então o controle de mim mesma me encontrava desnudada pela crueza fria de uma experiência tão forte. E assim somente é que eu poderia defini-la, era forte e sublime ao mesmo tempo. Leandro tinha entrado dentro de mim. Ou tinha em mim introduzido algo. O que era? Eu não sabia, mas a medida que eu ouvia a sua voz a toalha dos meus seios se desenrolava, fazia desenhos ao despedir-se do meu corpo e ia finalmente deitar-se no chão. O nascimento dos meus seios agora estava a mostra, e na ponta estavam as auréolas,  pouco entumecidas, um pouco envergonhadas. O que se passou depois eu não conseguiria lembrar, mas a presença do homem fez se fecunda corpo da mulher fértil.  Era isto que eu era: fértil. A mulher jovem, viril e estupidamente fértil. Eu era como terra boa esperando pra molhar e germinar as palavras que dele vinham como sementes secas. Eu não sabia naquele momento, mas sei agora que foi somente a minha ignorância que fez com que Karnal em mim fizesse morada. Nunca nenhuma escolha de palavras poderia ser tão apropriada como esta. Ha milênios o espírito santo tem feito morada no corpo imaculado das virgens. Eu havia então postulado que em mim, também, Karnal havia se embebido. O que foi feito estava feito.
Nos dias que se passaram, eu procurei não pensar muito no que havia acontecido na noite anterior.  Busquei esquecer apenas. A experiência tinha sido transformadora de tal forma que eu não pude notar as diferenças acontecendo em mim ao correr dos dias. Mas vieram, como vem todas as coisas que demoram, porque há tempo para tudo debaixo do céu. Eu percebi que não estava mais sendo a mesma. Havia sentindo sintomas.  Estava tonta ? Estava alucinada? Não era bem isso. Mas era como se de repente eu os meus olhos vissem mais, os meus ouvidos se aguçassem e a minha boca falasse em um ritmo mais sábio sobre aquilo que eu via no mundo. Eu era revestida pouco a pouco de uma consciência brutal espalhando-se como doença pelo meu corpo.  As minhas análises tornaram-se mais longas e menos imediatistas e os meus porquês tornaram-se também mais refinados. Era apenas professor este homem ou também um cirurgião sem escrúpulos?  Onde quer que eu fosse ele vinha na frente com o bisturi afiado da sua inteligência ferina dilacerando com golpes precisos o meu misticismo e o meu sentimento de transcendência sobre a vida. Eu me sentia tal como os corpos de Da Vinci sendo abertos , músculo a músculo, tendão a tendão. A diferença é que eu estava viva, vibrando de dor e êxtase enquanto ele em mim trabalhava, dia e noite, sem descanso. O que era isso? O que isso que estava acontecendo? O que era esta força que estava me jogando abruptamente para fora da vida ? Ah, isso também... eu quase havia me esquecido, há ainda a minha vida, as coisas que eu faço quando não estou sofrendo desse vazio que se instalou em mim.
Nas outras horas eu sou médica, infectologista, atendo pacientes com HIV. Todos me contam uma história muito parecida de como se infectaram. Dizem que foi um ato impensado, que se arrependem daquele dia em que não se protegeram como deviam. No consultório , ao falar com os pacientes novos vem imediatamente à minha cabeça as cenas daquela noite de Maio e como tudo poderia ter sido diferente se eu ligasse ou não aquela televisão.  Há uma diferença, entretanto. Meus  pacientes estão bem. Eles vão viver vidas longas e boas, com o tratamento certo. A ciência avançou bastante. Exames só a cada três meses, um comprimido todas as noites, nenhum efeito colateral, expectativas de vida normais. Mas e eu Leandro, quem é que me cura de você? Quem é que me cura dessa angústia, desse vazio, dessa doença que consome o meu corpo como peste, que consome os meus dias, a minha esperança ? Quem espécie de vírus é você, que se alimenta do nosso incômodo?
Ontem nasceu a Maria Eduarda, a mãe dela é soropositiva, mas a menina não... É, a ciência tem avançado bastante... Mas e eu Leandro, eu que nem mesmo sei se quero mais ter filhos porque tenho medo de que após nascer eles peguem de mim também esse incômodo que já se espalhou por mim toda... Sabe, tem um rio que passa aqui na cidade. É bonito, tem muitas árvores e passarinhos. Eu gostava de ir lá, todo domingo, depois da missa, e ficar sentindo o espírito de Deus. Mas hoje , depois de você, quando eu vou lá de novo e fecho os olhos eu só sinto frio e cheiro de mato.... Eu espero de verdade que alguém venha depois, e que venha logo, muito logo, pra me curar de uma vez por todas disso que você plantou em mim... pra me curar de mim mesma, assim mesmo, demais...
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quinta-feira, 20 de abril de 2017

Cartas para Maria ou A descoberta do Mundo

Munique, 28 de Fevereiro de 2017



Maria, meu bem,

         Eu sempre sonhei com um lugar como esse. Cheio de espaços vazios e em branco onde o nosso espírito pudesse flutuar livremente sem nenhuma pendência, sem nenhum peso. Onde a nossa alma pudesse naturalmente se expandir como se expande uma rajada de ar quente vinda do oceano. Subindo, espairecendo e desintegrando-se em pedaços de nuvens brancas, aeradas e espaçosas no céu largo dos nossos sonhos todos. Por isto eu te peço, minha querida Maria, este espaço, este tempo, esta xícara de café da onde sai fumaça quente, posta em cima de uma mesa muito bem arrumada, numa tarde de Domingo. Tudo é bom, tudo é bom demais e agora eu estou ainda melhor na sua companhia. É assim que eu chego e me achego. Eu vou fazendo uso desses pequenos dedos de prosa, eu vou tangenciando devagar estes assuntos, essas pequenas importâncias, para que com muita calma eu possa me preparar para a presença maior e mais austera das grandes importâncias. Para que eu possa me preparar e fazer em mim morada agradável pra isso, sem nome nem forma, nem cheiro nem som. Pra essa majestade triunfal que não tem presença física mas que ocupa um espaço largo dentro da gente, dentro do coração selvagem da vida. E é por isso Maria, porque eu gosto de deixar o meu espírito confortável é que eu preciso usar com sabedoria esse tempo de adornamento e maturação, porque como você já sabe existe tempo pra tudo que acontece debaixo do céu. Que este possa ser então, o nosso.

         Maria, meu bem, tenho saudade de tudo. Tenho saudade de mim, menino, criança, os olhinhos como duas bolas de gude ingênuas fotografando tudo a volta. No chão os pés descalços, nas mãos um
papagaio de papel e no coração pequenino o universo inteiro. O coração tem seus mistérios, eu antes não sabia, mas agora entendo. O universo, Maria meu bem, o universo é um rascunho do homem. Dentro do homem vige tudo que existe, seus caminhos, suas estradas. Seus pedaços de borda de mata, suas veredas. Dentro do homem pulsa a força que pulsa em tudo que há. É a vida em si, a existência real da matéria que no homem reverbera, anuncia, em prelúdio último: Eu sou, Eu sou, Eu sou. É nas carnes, é no sangue pulsando, é nas veias, é nas lágrimas, é no luto que toma o corpo como a noite toma a Terra quando o Sol não mais se vê. Tudo pulsa uma mensagem de existência, tudo pulsa uma mensagem revolucionária contra o nada, porque o nada em si não pode haver. O Ser perpassa o espaço. Tudo que é espaço deve de estar a toda hora preenchido. E isso que a tudo permeia, e que tudo pensa, e que tudo vê e que tudo sente, isso - veja bem: isso é o homem, os vazios do homem. O universo em si é apenas o homem demais, o homem demasiado, o homem sem medidas, o homem derramado sobre as suas criações. O coração tem seus mistérios. Coração profundo, cheio de meandros, coração que corre como rios quentes subterrâneos, por dentro das carnes da Terra, e que vem de novo à superfície e que se jogam das alturas das cachoeiras porque está sendo sem medidas:
coração suicida, cheio de saudade. Olhe bem minha querida, como é que eu vou explicar pra você esses mistérios que eu nem mesmo entendo ? 
          Acordei agora, pois que foi. Que tinha dormido, mesmo, anos longos, anos muitos, o sono denso, pesado. Na vereda da noite, nas pinguelas, nos barrancos. A minha alma dormiu o sono noctívago das corujas, dos bois pretos, e dos sapos touro, cantando o seu coaxar, na beira do brejo: murmúrios antigos, silêncios e sons, todos meus, todos nossos. Esse sono ancestral que eu dormi depois de ser menino. Pois que acordei agora, já homem, muito tarde . O diabo é isso: é os avessos do homem. E eu que agora assim me manifesto por causa de uma vida, de um espaço, dessas cobranças muitas. Quem eu era antes ? Quem eu sou agora ? Eu que acordei de um susto sem precedentes na calada da noite da vida estou agora olhando para tudo a minha volta com os olhos abertos, arregalados, e a boca anda infantilizada pela surpresa. Tem que viver, pois que muito, apesar de tudo, tem que viver. Mas como, que mal lhe pergunte ? Esses medos vem atacando a gente de toda parte, na borda
escura das matas fechadas, na beira da Serra brava, de onde vem de direções duvidosas o latido dos cachorros do mato. Como é que eu iria de principiar essa vivência, se nunca antes tinha tentado? Se nunca antes me tinha sido pedido? Eu que fui expulso sem notícia do ventre quente e confortável da vida e ainda não me livrei do líquido amniótico nem da placenta morna e plácida que então me acalentava. Eu que sou de súbito obrigado a lamber essa minha pele nova, esses meus ossos que nem sabem que são feitos de matéria sólida e por isso se prostram duvidosos sobre a estabilidade que deveriam conferir às pernas e aos músculos e a arquitetura do Ser. Eu que invejo as crias das vacas e das cabras que depois do nascimento já aprendem da sua própria natureza a ser bicho em poucas horas. Já nascem mamando e trotando e explorando o espaço verde que lhes pertence porque não tem a mesma dúvida que eu tenho de me perguntar se a natureza é também parte minha ou não. Eu que não sei o que fazer com essas liberdades todas, líquidas, rarefeitas, que me entram pelo nariz queimando os pulmões como a primeira rajada de ar quente que um dia eles respiraram. O meu olhar se funde ao redor da cabeça toda e tudo observa ao mesmo tempo em todas as direções. Para onde ir afinal? O que fazer com essas doses de vida, sendo aplicadas assim, sem nenhuma espera, nas minhas veias? De tanto pensar nisso, adoeci. Foi quando decidi, finalmente, dar ao meu coração essa tal liberdade que ele tanto me pedia. Eu estava na rua, andando sem direção, era um fim de tarde quente num dia ensolarado de primavera. Era um calor ainda tímido, mas bom, propício para estas coisas do espírito. Pensei comigo que, se o meu coração fosse uma pessoa, onde é que ele me levaria ? Saí andando sem direção, dobrando as esquinas a medida que eu bem entendesse e bem quisesse, estava deixando-me guiar por este sentimento que era então novo pra mim. Passei por lojas , galerias de arte, exposições, construções do século passado... tomei um sorvete artesanal, fiquei um tempo observando um gato cinza dormindo, do lado de dentro da casa, encostado numa janela de vidro. Eu estava sendo uma coisa muito única: livre. Que bom que era aquele sentimento, talvez fosse isso que eu deveria fazer, deveria de uma vez por todas deixar o meu coração tomar conta da minha vida e ir me guiando pelas estradas de onde houver. E aquilo foi apenas um exercício, um ensaio. Nos dias que se passaram eu fui me relaxando cada vez mais, fazendo mais silêncio, prestando mais atenção, tentando ouvir o que o meu coração, como uma pessoa, estava tendendo me dizer. Os barulhos dos meus erros eventuais se tornaram cada vez mais baixos. No trabalho por exemplo, decisões mal tomadas, experimentos que não deram certo, tudo isto passou a ter uma importância menos significativa, passou
despercebido. Mas, em contraponto, o meu peito todo florescia por este sentimento único e novo que de mim tomava conta. – O que é que você quer me dizer ? Aonde é que você quer me levar ? Eu perguntava a toda hora, e ele me respondia. Sim, minha querida, coração responde também. Não pela linguagem dos sons mas pela linguagem universal dos vazios de palavras. E a medida que os meus dias se tornaram mais largos uma paz que eu nunca tinha sentido antes começou a se apoderar de mim. Ela ia e vinha como vem e vão todas as coisas boas que se aproximam de uma forma mansa sem pedir permissão. Essa paz, pensei eu. Essa paz só eu é que posso me dar. E por mais que eu nunca me lembre em que momento eu permiti que ela viesse e se instalasse ela mesmo assim veio e se instalou, como uma doença , se espalhando por todo o meu corpo. “Essa paz só eu é que me dou” – e essa mensagem ecoava , longínqua e forte por toda as extremidades do meu corpo e do meu espírito. Eu percebia que chegava mais perto de uma coisa que eu não sei o que é. Uma presença ? Um sentimento ? Do amor, talvez ? Mesmo sem fazer ideia do que era aquilo o sentimento de proximidade da coisa que eu até antes ignorava se fez mais forte. Estava perto, estávamos perto um do outro. Coração corria solto. Eu ia afrouxando as minhas amarras enquanto ele me moldava , querendo sempre mais. Sem que eu percebesse tomou ares de uma força maior. Ficou forte, corajoso, cresceu largo e fez morada em tudo a volta. Comecei a me perguntar onde é que esse coração me levaria, se eu permitisse. Mesmo com receio eu fui dando a ele quantias cada vez maiores desta vida que me pedia. Coração mistério, toma formas muitas. Pois foi isso que ele fez. Cresceu como uma planta cresce, brotando como um tubérculo nascendo das minhas carnes. Cresceu aguado por doses líquidas de liberdade, germinou esparramando suas protuberâncias, suas extensões, seus braços verdes e suas ramificações finas e múltiplas abraçando tal como mãos cheias de dedos tudo que existe. Tangenciando, alcançando por distante, procurando numa luta ferina pela vida conectar-se também, com outras planta-coração. E o que acontece quando, por azar ou por destino, coração cresce sozinho, no meio de um deserto, onde o único pedaço de terra fértil são as carnes
de um homem só ? O que acontece quando essa planta não encontra
outras plantas com quem possa fazer o pacto que sela a união da vida?
Nas pontas que vão crescendo, as extremidades se retorcem um pouco
mais, iniciando um movimento em direção ao desespero. Se espicham,
buscam formar conexões mas não encontram nada. É vazio. É vazio. É
vazio. E por não conseguirem firmar o laço que as fariam beber desta
seiva estrangeira elas imediatamente se tornam ressequidas em
espinhos, tornam-se loucas, violentas e vingativas. Vem procurar no
centro o que não encontraram fora. E começam a se alimentar do núcleo
da qual foram geradas. Este núcleo antes verde e vitalício que ao ser
atacado se torna seco e ressequido, torna-se putrefato. Eu olhava de
fora para dentro. E a visão da luta se tornou clara. Um susto de mim
então se apoderava , e eu me afundava cada vez mais nas areias
movediças das minhas incertezas por não saber de onde o susto vinha.
Faltava-me o ar ? Faltava-me o que ? Era o susto, puro e simples,
crescendo por demais. Incontrolável. Em algum momento eu havia
cogitado a hipótese de não dar tanta força assim a algo que não se pode
controlar. Mas era isso ou sucumbir ao peso da minha própria dor.
Permitir-me esta liberdade tinha sido a última tentativa de uma
resolução deste conflito entre o homem-bicho e o homem-humano. O
que eu deveria fazer? Para onde correr ? Eu observava tudo aquilo. A
luta em si foi o desfecho. Mas, afinal, o que havia de mal nisso? A luta
em si tem sido o desfecho ancestral que a bilhões de anos forja a vida
nas entranhas quentes do caldeirão da terra. Tudo dentro de tudo. Em
um fração de segundo, por um descuido mínimo de atenção, eu me
distanciei do meu próprio sofrimento-sonho. Sim, por um átimo, um
milésimo mesmo, como golfinhos eufóricos vindo a superfície para
respirar uma única rajada de ar quente. E foi isso, esse descuido bem
cuidado, esse presente, que me fez ver o que eu não podia ver antes.
Nesse momento, de pura contemplação, o meu espírito inchou. Era
líquido ? Era vapor ? Era um plasma particulado de exaltação pura ? Eu
via dentro de mim essa luta secular estendendo-se a todos os níveis
deste universo observável. Bonecas russas, pintadas a mão. Uma dentro
da outra e dentro da outra e dentro da outra. Nos átomos, nas células,
nos tecidos e órgãos, no corpo, nos homens, nos bichos e nas plantas, e
nos líquidos e minerais. A luta perpassa tudo que existe. A luta existe
em silêncio como natureza íntima de toda a beleza do mundo. Eu via
agora, pela primeira vez. Que maravilha que era isto apenas: ver. Com
os olhos de fora fechados e os olhos de dentro bem abertos, eu chegava
mais perto dessa espécie de presença, fonte radiosa de luz que brilhava
sem cegar, que esquentava com brandura, que me rodeava com essa
paz, a minha paz, minha mesmo da qual eu tanto tinha saudade. Eu me
deslumbrava com esse entendimento, muito sensível, que jamais por
mim poderia ser tocado, a menos que me fosse oferecido. Esse
sentimento, por aqueles instantes, me libertou, e eu floresci. Era isto
afinal. Era a luta dentro de tudo, era a luta dentro de mim. A luta que
continuaria existindo enquanto a vida dentro de mim pulsasse. Tudo
em paz. Tudo bem. Tudo como deveria de ser. Enquanto eu era
iluminado por aquele entendimento o meu medo se esvaia, era drenado,
gravitacionalmente. Como quando as comportas de uma barragem
estouram porque não estão mais aguentando o peso massivo sobre os
seus portões. O meu medo era um mundo de águas violentas correndo
pra baixo, esvaindo-se, trotando como cavalos de espuma, inundando as
várzeas e campinas, as planícies e os terrenos baixos. Tanto sentimento.
Um alívio ? Um vislumbre ? Mais do que isso. Era bom e calmo. Manso,
sereno. Não haveria como descrever de outra maneira. O sol virá mais
tarde, e ao seu tempo as águas derramadas serão de novo nuvens no céu
, espelhadas na superfície dos lagos , cercados de verde, muitas flores
em volta, árvores altas, antigas, passarinhos cantando. E num banco, de
frente pra tudo isto, eu e você, minha querida Maria. Quem sabe mais
velhos, quem sabe mais maduros. Com as tuas crianças, com as minhas
crianças. Brincando de roda, dançando a ciranda espiritual que precede
a entrada nos portões do céu. Esse céu: vasto, enorme, infinito, correndo
pra todo lado, dentro da gente.



Yuri

domingo, 1 de janeiro de 2017

Lúcia


porquê já era demais que durava aquela demora. Na ante sala a mulher esperava com o corpo contraído. O relógio parecia atrasar o tempo.  Ela era tomada de uma angústia muda preenchendo-a por dentro, empalhando-a com uma apatia que ela não conhecia antes. Já sofrera por tantos anos que não fazia mais diferença esperar por mais quinze minutos ou por um dia inteiro. Fechou os olhos e contraiu as mãos. Procurava imaginar o que fazia o médico, do outro lado do porta. O sabor da resposta a agradaria. Depois de se debater muda em silêncio por tanto tempo tinha enfim tomado coragem de procurar o psiquiatra. Tinha preconceitos, muitos. Não queria ser chamada de louca. Não queria que soubessem desta estranha decisão. Estava de óculos escuros e por trás deles certificou-se que ninguém na rua podia olhar pra dentro da clínica e testemunhar a mulher em seu último ato de desespero. Para não sucumbir ao peso da sua própria alma concentrou-se na sua respiração de modo a suprimir a ansiedade. Respirava em pulsos fortes e ritmados, oxigenando o cérebro o mais que pudesse, de forma a relaxar os músculos e também o espírito. Foi sendo consumida nessa meditação forçada enquanto seu corpo lentamente entrava em transe a medida que o oxigênio inundava o cérebro. A mulher e o tempo, a mulher e o espaço. No mais, tudo era silêncio. Foi quando de repente ouviu a porta do consultório se abrir e seu nome ser chamado.  Ela entrou, não disse nada, sentou-se em frente a doutora. Com os olhos semi cerrados e os ouvidos muito abertos preparava-se para ouvir o diagnóstico. Sabia que não haveria de dizer nada. Sabia que a conversa que tinha tido com a médica minutos antes seria suficiente para apontar-lhe uma direção a medida que algum tratamento fosse iniciado. Havia se alimentado dessa esperança para tornar a vida finalmente possível. A mulher forte, a mulher determinada andou de cabeça erguida até a cadeira onde sentou-se para ouvir sua sentença.

-       Lúcia, depois de analisar e pensar muito sobre o seu caso eu cheguei a uma conclusão. A notícia que eu tenho pra te dar não é a das melhores. Mas eu quero que fique tranquila porque nós iremos superar isso juntas, por isso nada é motivo de medo.
-       Mas o que é que eu tenho, doutora ?
-       Você sofre de Paixão, Lúcia. E não é de uma paixão qualquer, é aquela mais selvagem de todas, da pior espécie que pode atacar um ser humano.
-       E o que é que isso significa?
-       Significa que você está predestinada a ser apaixonada pela vida. Significa que o teu espírito freme de uma chama violenta que fará com que todas as coisas a tua volta sejam feitas a imagem e semelhança da natureza de uma alma forte e selvagem. Significa que os teus desejos são profundos e a tua essência é como as grandes baleias azuis que precisam das águas profundas para acasalarem e terem seus filhotes. As águas rasas de uma existência superficial te sufocam , te atolam e te deixam morta nas praias desertas das tuas horas vazias. E então você fica assim: letárgica, paralisada -  porque o teu espírito tem fome de mais coisas que não são deste mundo. Lúcia, meu bem,  a paixão começa assim:  no início é tênue e pode quase passar despercebida. Começa com um senso de beleza mais apurado, com perguntas para as quais não se tem resposta, tudo de uma forma ingênua e inofensiva. Ninguém geralmente teme os seus primeiros sinais. Começa com um olhar triste sobre a natureza monótona das casas e dos carros e das ruas. Tudo de repente passa a ser insuficiente, porque a tua paixão, depois de ter começado a queimar, vai te exigir mais do que a realidade pode oferecer. As tuas experiências passam a ter necessidade de um misticismo exacerbado porque senão passam a ser monótonas e isto as torna insuportáveis. Você começa a querer mais do mundo e a isso você não chamará de insatisfação, mas de uma angústia criadora e de uma força impulsionadora de uma vida. E deste ponto em diante a paixão começará a cegar seus olhos. O senso estético começa a se apurar, e com ele um perfeccionismo que passará a corroer seus dias. Em todos os detalhes você buscará uma experiência que nunca se deu antes. Você comecará a fazer planos para que o seu futuro seja não aquele que a vida te daria de bom grado, mas aquele que você exige como recompensa por ser uma boa pessoa. Para agradar ao mundo você passará a ser rude contigo mesma. Você sacrificará o teu corpo e o teu sangue em nome da realização dos teus sonhos e a isso chamará a vitória tua de cada dia. A respiração então passa a se tornar ofegante em alguns momentos. Você exigirá uma água mais azul, uma temperatura mais amena, pessoas mais agradáveis, lugares mais distantes. Nada, nada absolutamente te deixará satisfeita. O teu sentimento de mérito te fará desejar mais e melhor. Comecarás a ser mais severa consigo mesma e é esta severidade que roubará a casca dourada dos teus dias. Grandes planos estarão ao teu horizonte e você alcancará todos eles. Você cavalgará até o futuro montada em elefantes dourados, gigantes, pisando por cima de tudo, deixando apenas um rastro e destruindo as pequenas plantinhas que ficam pelo caminho. O teu corpo se revestirá de um manto invisível de glória e tu te tornarás indestrutível. A paixão vai continuar queimando enquanto houver paixão. Fisicamente sentirás um ardor no peito, um incômodo. É o teu espírito que diz: tenho fome. Não há mais o que fazer então. Alguns exercícios físicos podem ajudar, um banho frio, uma ou outra hora em silêncio, com os olhos cerrados. Mas estes serão todos paliativos. Em verdade a tua paixão exigirá de ti um esforço sobre-humano. Tu lutarás. Não há outro meio. Tu te agararrás à vida com os braços e a pernas e com os dentes também. Porque caso te tornes apática o peso exagerado da paixão desabará sobre ti e isto será a tua morte. Por isso Lúcia, eu te desejo coragem e força, eu te desejo sabedoria, eu te desejo ventos favoráveis para que possa velejar segura nesses mares abertos de pura, profunda e violenta, paixão. 

Lúcia não conseguira acreditar no que acabara de ouvir, estava imersa em puro  êxtase de viver. Para certificar-se de que estava acordada esfregou mais uma vez os olhos, passou a mão no rosto e nos cabelos. Na sua frente  de súbito a porta se abriu. Ela ainda estava sentada na antesala, de onde nunca havia saído. Ajustou o foco da visão, colocou o óculos. Recompôs-se.
-       Senhora Lúcia Maria Aparecida.
(…)
-       Por favor pode se sentar.
(…)
-       Olha, o que a senhora tem é depressão. Vou te passar aqui uma receita, pode começar a tomar hoje mesmo. Clonazepam, 2 mg , duas vezes ao dia.