quinta-feira, 6 de março de 2014

Sobre cadeiras e tensores de inércia...


                 




                    Mas  enquanto  aquilo era, eu  estava sendo mais  ainda. Sentei-me. Não pude chegar pelo pensamento, pensando era como abrir portas que davam para uma poço escuro e muito fundo. Pensar, que tinha sido a minha salvação minutos antes estava sendo agora, a via-crúcis do meu corpo. Eu quis querer não pensar, mas de pensar isso estava pensando, então logo senti, como um pedaço de osso entalado na garganta, o paradoxo em que havia me colocado. Não fui eu quem escolheu entrar naquela galeria. As escolhas são movidas por vontades muito antigas, como crimes friamente premeditados. Eu entrei sem escolher, como um não saber que eu queria e me dando por isso o objeto do meu desejo. A arte não foi para mim,  nunca foi, dentro de uma galeria de arte eu me sinto como um estrangeiro, eu me sinto estranho à Terra, estranho à própria vida em si. Eu não sei entender a arte porque para entender a arte eu preciso esquecer de quem eu fui, e do que eu aprendi, e do que eu acho,  e no que eu creio, com uma certeza radical e fundamentalista que quase me assusta. Eu gostaria de ter a atitude libertadora de alguém que para mim me dissesse que eu sou um beija-flor. Eu queria ter a atitude de acreditar nisso, e prontamente sentir-me a pele recoberta de um verde esbravejante, purpurilando  sobre minhas penas, em faíscas de lantejoulas fosforescendo sobre aquela minha nova ideia de mim. Mas  ainda não tenho essa simplicidade de alma. Se alguém me disser que eu sou um beija flor, eu não vou acreditar. Eu vou dizer que sou eu , e possivelmente acrescentar que é uma estupidez dizer que pessoas são pássaros.  Sei que não vou ter a sublime inocência que têm os místicos e me perguntar: “Será que eu não sou mesmo um beija-flor?"
                Minutos antes eu havia saído de uma aula de física. Na minha mente só brilhava, como um sol logo depois de ser aceso, na minha mente só brilhava a contemplação fria porém estonteante que é a lógica humana. Eu acabara de aprender o que era um tensor de inércia, e pra que ele servia. Mesmo que não servisse para mais ninguém, mesmo que fosse inútil para tudo o mais que há no mundo, ele era pra mim, o meu segredo raro. Eu admirava aquilo com a mesma devoção de quem, por não saber que o sol é um astro, se devotava ao Deus sol . Ou com a mesma devoção que quem, por não saber o que é uma célula, ou por ignorar a existência dos átomos, se devota ao Deus criador da vida, e que reside no céu por uma questão de comodidade, ou por esta pessoa também ignorar o fato óbvio de que no céu não há nada mais do que apenas ar e nuvens, e de vez em quando alguns aviões e pássaros.
           Mas o que se sucedeu foi que , saindo da aula, caminhei para uma exposição de arte, timidamente entrei e comecei a olhar quadros, diários antiquíssimos, telas, esculturas , objetos não identificáveis. Eu não conseguia entender nada. Do mesmo modo como quem não sabe ler tem vergonha de segurar um livro nas mãos eu passeava pela galeria tentando desvendar alguma lógica por detrás do que aquelas pessoas queriam dizer com as suas obras. Mas o meu cérebro, maquinando como uma locomotiva a vapor, falhava em tentar encontrar um padrão, uma linha mestra, um código secreto que conectasse todas aquelas aparentes inexpressões matemáticas. A minha lógica falhava em acender, como um fósforo molhado falha em queimar. Quase que como numa angústia eu tentava parir uma conexão , uma resposta, um alívio para a dor de não conseguir explicar  o que era aquilo.
                  O que eu tive foi uma espécie de paralisia, um choque metafísico. Por um instante eu julguei sentir meu cérebro escorrendo pelo meu nariz. Então deixei de entender, eu tentei me dar a frágil inocência de perdoar o fato de que não, eu não estava entendendo. Permiti-me a doçura burra de passear por uma galeria de arte e apenas olhar para as coisas, matando em mim a ambição de tentar explicar  o que queriam dizer aquelas obras. Eu  não sabia o elas queriam me dizer, talvez não quisessem dizer nada, talvez quisessem apenas existir de uma forma estrangeira e provocadora. Senti-me dono de uma liberdade enorme. Por ter abreviado em mim a fúria possessiva da lógica eu conseguia olhar passivamente para os objetos, e ao invés de eu dar um significado para as coisas, cada coisa que eu olhava dava um significado para mim. Criavam algo de novo, modificavam-me, tirava partes minhas do lugar, mudavam tudo de repente. Eu me sentia, submetido a cada obra,  tal qual como um punhado de alguma coisa líquida, sendo trocado de vaso e também de estados físicos. Uma hora eu era vapor, outra hora um gás disperso, e então um aglomerado de gotículas solitárias, solidariamente dando-se as mãos e escorrendo pelas paredes do vidro em que eu era mantido prisioneiro.  Então eu,  que minutos antes estava tendo a contemplação do universo revestido pelo manto do orgulho de intelecto estava sendo agora cobaia  daquela experiência quase que espiritual. Antes eu só existia, eu estava agora, pela primeira vez, sendo alguma coisa.
                  Como se o meu corpo fosse uma monarquia muito antiga eu tirei a minha razão do poder, fiz uma revolução  nos meus ideais, desmanchei os meus castelos e deixei só a areia e o pó das fortificações destruídas. Enquanto eu olhava, as coisas olhavam de volta para mim. Que delicia que era tudo aquilo não fazer sentido. Eu vi cordas, cadeiras, papel, diários, roupas de criança, muitos quadros, vidros e fibras, rendas, frases sobre a guerra, objetos pessoais, tudo muito raro, tudo de uma sensibilidade  que antes eu não conhecia. Espantado com a maravilha que era só observar eu me sentei. Era para mim um êxtase aquilo, eu estava nascendo de novo. Sentado eu olhei uma escultura à minha frente: dois pedestais de aço, no topo deles, a mais de três metros de altura do chão havia, uma em cada pedestal, duas cadeiras de madeira, sem estofado, deitadas de lado, suspensas pela lateral, e  tocando-se levemente, uma os pés da outra.  Aquelas cadeiras não me dizia nada, absolutamente nada. Mas enquanto eu olhava para elas eu conseguia olhar para o vazio dentro de mim. Que abundancia que é isto de não entender. Fazia silencio, e nós três , eu e as duas cadeiras, participamos de uma comunhão muito íntima, entre as quatro paredes e o teto alto de uma sala toda branca. Porque enquanto eu olhava para aquilo, sem a malícia de querer ver algo a mais do que os meus olhos podiam me contar, eu tive um pensamento, como uma dor revestida de elegância. E eu acho que foi mesmo  só pela sublime humildade de não querer entender é que eu fui presentado com aquele pedaço de entendimento. Eu descobrira porque eu não acredito em nada, compreendera enfim o meu ceticismo. Acreditar em alguma coisa, em um Deus por exemplo, seria como se alguém me desse uma folha de papel, não em branco, mas cheia de textos e palavras, e anotações, e mesmo coisas que eu não entendesse, fórmulas, números, e frases em outros idiomas. Era como se alguém me desse essa folha suja e algumas canetas, e  também pincéis e tinta e pedisse para eu criar alguma coisa original em cima daquilo. No máximo a minha criação se confundiria com o que já estava escrito na folha e eu teria como resultado uma pintura muito feia, borrada, uma indistinguição entre o que era meu e o que já estava escrito. É por isso que eu não acredito.  Não acreditar é o mais belo esvaziamento de alma. É como ser, eu mesmo, não uma folha, mas um livro inteiro em branco, só para eu pintar, e desenhar, e contar histórias minhas e dos outros, e falar sobre a minha vida, e o que vi pelo caminho aberto dos dias:  do de-manhazinha até a hora do sol se por. Eu disse um livro; Refraseio. Não acreditar é como se o mundo todo fosse um chão em branco, uma bola redonda do tamanho da Terra, todinha branca. Eu olho a bola sem horizontes definidos, meus dedos me pedem uma experiência. Ajoelho para tocar o firmamento e sinto a textura do papel que não está nem num livro nem em uma folha, mas no chão todo, e no céu e nas paredes. Os meus pincéis e tinta são as árvores, a cor dos pássaros, o som dos rios, que também tem uma cor de muita inteireza associada a eles. Com outras tonalidades eu escolho o andar dos transeuntes, o riso das crianças, e para fazer contraste entre luz e sombra eu uso de um pouco do escuro da minha própria dor, que também é bela. Para não perder de todo o prumo da realidade uso o esfuminho e aqui e ali delineio traços de angústia, rabiscos de tristeza. O que seria da arte se não fosse a ausência de cor?
                  Sem pensar eu vou pintando.  Só por não acreditar eu me permito essa liberdade, só por não acreditar eu me abro, eu mesmo, como um livro branco para isto a que se chama vida. Só por não acreditar eu permiti que a arte fizesse de mim a sua obra inacabada. Só por não acreditar eu permiti que sentado ali naquela sala, olhando para duas cadeiras suspensas a mais de três metros de altura eu fosse mais do que alguém em uma  sala olhando para duas cadeiras a mais de três metros de altura. E isto, isto de  que eu não ouso falar,  mas que é muito sublime ,  isto em si eleva a minha percepção das coisas como se houvesse algo além de mim, e além dos meus bilhões de neurônios que um dia morrerão e algo além do fardo pesado desse corpo que um dia se esgotará. Olhando para aquilo e sentido a beleza que era isso tudo quase que eu pensei que eu fosse mais do que o meu corpo, e que fosse talvez o meu espírito que estivesse sentindo tudo isso. Mas então, ao pensar assim, por um pecado descuidado, uma desatenção não planejada, eu estava acreditando em alguma coisa. E como num fechar de portas e apagar de luzes e um despedir-se apressado de pessoas o meu mundo voltou a ser apenas eu , em uma sala, e duas cadeiras suspensas a mais de 3 metros de altura do chão. Isso, de ser raro por um tempo só acontece enquanto a gente não está acreditando. Eu sei que vai voltar a acontecer, enquanto eu não tiver ideias pré concebidas, enquanto eu não me fechar, sufocadamente debaixo do muro esmagador da minha lógica, enquanto eu me permitir ser, não eu, mas apenas um livro em branco, um livro enorme , com páginas tão brancas e largas como lençóis se estendendo sobre montanhas de areia. Enquanto eu for vazio eu carrego comigo a possibilidade de ser tudo. Enquanto eu guardar em mim a doce virgindade de um papel nunca tocado por um lápis eu terei a paz de uma mente nunca invadida por um Deus. Enquanto eu me permitir isso talvez me seja dado em oferenda a percepção de ser, eu mesmo, maior do que o meu corpo descartável, de ser me oferecida a possibilidade de uma alma, não como uma ideia, não como uma certeza, mas como uma sublime casualidade incerta, como a de haver potes de ouro ao fim dos arco-íris e anjos voando entre as nuvens do céu. Mas, isso, só enquanto eu não acreditar...