quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Primavera




“… Só que ela não queria ir de mãos vazias. E assim como se lhe levasse uma flor, ela escreveu num papel algumas palavras que lhe dessem prazer: "Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem — pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela — apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.
Ela sorriu. Ulisses ia gostar, ia pensar que o cavalo era ela própria. Era? "

Escrevi a palavra Ele. Apaguei. Comecei de novo. Escrevi Eu. E o meu olhar sobre nós dois ficou tão bonito como qualquer coisa que eu não sei descrever mas que me lembra o Rio de Janeiro em Maio. Um fluxo ordenado, pacífico e calmo de ideias se apoderou daquilo que eu julgo ser. Sim, apenas do que eu julgo ser, certezas são por hora desnecessárias. Não, nem caos nem drama. Exatamente o que ouvistes. Sinto desapontar lhes se vós sois um dos meus ex leitores melancólicos. Escreverei muitas coisas, livrar-me ei de muitas delas. Preciso antes de tudo permitir o caos, o erro, o não saber, o desafogar desse animal solto na minha imaginação me guiando para... Onde ? Qualquer lugar que eu não sei mas onde ele esteja ao meu lado. Nossos corpos juntos, o silêncio dos  olhares se procurando, a certeza de que nada precisa ser dito. E nem desculpas sobre a a falta de um caráter mais melancólico e dramático para essa dissertação desacertada. É preciso não pensar para escrever. A criação é sábia e paciente, qualquer olhar atrevidamente apressado sobre o seu processo  e pronto, ela se parte. Sem nada almejar, esperemos, e se for da vontade dela, a obra, se fará perfeita. É preciso me permitir uma liberdade que eu não me dou normalmente em uma dia excessivamente nítido e premeditado.
O tempo de espera acabou.  A contagem infinita dos dias sem fim, o prolongamento eterno de uma felicidade que é agora. Queria chamar-te Ulisses, mas meu orgulho me pediu pra ser original, quis chamar me Eu, mas também a originalidade se me faltaria. Quisera que não existissem gênios e todas as primeiras ideias fossem minhas. Na falta, ou abundância de opções, eu me chamo Nós. E vejo teu reflexo nos meus olhos. Todo o rio da minha vida corre entre essas palavras nunca ditas. Para qualquer um que passe somos apenas namorados, transeuntes sentados em mais um por do sol nas pedras do Arpoador. Mas não pra Nós. Um eu e um tu separado de mim e de ti, que só se manifesta na nossa presença como uma comunhão muito espiritual e transcendente. Ausente de mim e de ti Nós sente essa beleza sem ser um, sem ser dois, mas sendo ao mesmo tempo todo o oceano, a vastidão dos prédios, o pôr do sol, o sol em si mesmo e as areais de todas as praias do Rio   de Janeiro. Nós é ao mesmo tempo a felicidade das pessoas saindo da água salgada e deixando o mar para trás , voltando pra suas casas, pros silêncios dos seus amores mais secretos. Nós é a ponte que me liga a essa experiência incompreensível porém completa e perfeita em si mesma. Sinto tua mão envolver a minha e o calor que eu sinto vem me contando que depois dessa vida haverá muitas outras. Esse calor transeunte entre os nossos corpos vem me contando profecias de tempos muito depois destes, e de coisas maiores que ainda haverão. Levemente me recolhes com o braço esquerdo, vertes a cabeça sobre o meu ombro  e me presenteia com um beijo nos meus cabelos salgados. E então eu sei que além de muitas vidas virem depois dessas, ainda há outros mundos, sóis, estrelas habitadas e a existência de astros remotos, talvez até um céu para um dia repousarmos. Concepções metafísicas espiritualizadas e coisas que de longe eu não ouso compreender. Mas Nós é mais do que isso. Não bastasse o oceano da tua presença ainda tem a tua voz a me dizer coisas que eu já sabia muito,  muito antes dessa vida e de toda a terra ser formada, coisas que eu sondava existirem antes mesmo de o espírito de Deus soprar sobre as águas. Teus dedos percorrem os caminhos de meu corpo num carinho sem precedentes. Dentro de mim tudo é silencio. As palavras são por vezes uma grande fonte de mal entendidos. Por isso nos calamos e mesmo assim dizemos tudo que é preciso ser dito um ao outro. Eu me volto pros teus olhos, e dentro deles me vejo. Pergunto-me quantas vidas eu vivi antes dessa ate que eu encontrasse de novo esses teus olhos. Me lembro como nos damos tão bem um com o outro , na companhia de tudo, que nunca nem pensamos um no outro, como num acordo íntimo, entre a mão esquerda e a direita.
Não bastasse tudo isso, deitas me tu ao teu colo e me fazes repousar. Lá em baixo só o barulho do mar escavando as pedras. Mas aqui dentro o som de todas as galáxias em formação dorme serenamente dentro do meu espírito. Eu respiro. Tua mão sobre o meu peito. E o meu modo de respirar te conta de segredos que eu jamais ousaria dizer. Nem Eu, nem você, Nós mora nesse lugar, indescritível, inalterável, sem rotas e nem mapas de como chegar aqui, esse lugar que aparece, como um portal mágico entre eu e você, como que numa fotografia roubada do tempo.

Yuri Volpato Santos , Canadá, 06 de Dezembro de 2013-12-06