O espaço debaixo do chuveiro cheio de
vapores não permitia uma divagação mais longa. Ela assentia inconscientemente a
existência de uma civilização para além do ser corpo finito, mas tais
conclusões eram de menor importância. Ali estava apenas ela, existindo, de um
prazer gratuito, com as mãos fazendo espumas ao redor do corpo, acariciando o
abdômen , deslizando até a nunca e depois descendo baixo-terra até os contornos
do seu sexo. E ali pararam, mas em sua mente o filme mental era de um homem que
ela havia visto na rua, que já conhecia, era atendente em uma loja de peças,
não tinha mais que 25 anos, ela apenas o tinha visto uma vez, e agora o
encontrara novamente, numa esquina de frente. Seguiu o rapaz pela calçada, por
trás, observando. A espessura dos cabelos, lisos, de um loiro acastanhado, os
olhos que sorriam, os braços fortes, uma boca desenhada para o beijo, e um
jeito de homem. Não um homem que tem cheiro de perfumes, mas um homem cujo
próprio cheiro é uma espécie de presença, e que a deixavam deste modo como
ficava, antes e depois da menstruação. Enquanto seguia o rapaz, profetizou
sobre ele, desejou ser ela mesma ser Deus, e falar-lhe sobre a importância da
sua beleza física, do abdômen desenhado em puro músculo, dos olhos que sorriam,
das costas largas, dos sorrisos que se desmanchavam em beijos. Pensou em
pará-lo, em instrui-lhe uma missão, em leva-lo para casa e deitar-se com ele.
Ter dele um filho, e dizer, em um tom muito solene e profético : Vai pelo mundo e
multiplica-te . Fecunda as mulheres que julgares belas. Para que a vossa
descendência seja fértil de homens que sorriem com os olhos, e que servem de
deleite as mulheres belas em suas camas. Porque uma vez que há a morte, que
possamos criar o prazer antes disso. Que possamos encher a terra de homens
belos com os quais nós possamos nos deitar. Virgínia era conhecedora das
escrituras e não conseguia se lembrar por hora de nenhuma mulher profetiza, não
conseguia se lembrar por hora da verdade sendo proferida com tal entonação de
ordem, pela boca de uma mulher. E isso a deixou excitada, porque sentia-se dona
de um poder que ela mesma se dava. As falanges dos dedos se contorciam,
ondulavam e depois se acalmavam enquanto este pensamento se sucedeu, como um
fio de prazer escorrendo do cérebro para
os portões do útero e depois para o chão. Enxaguou o cabelo, fechou a torneira
e enrolou-se na toalha. Penteou os cabelos molhados em frente o espelho, e com
a toalha enrolada um pouco acima da altura dos seios saiu para o quarto, pés no
chão, livre. Dona de uma liberdade que não ousara experimentar antes andou pelo
quarto deixando um rastro húmido enquanto procurava por alguma coisa. Já estava
seca agora, e sentia a temperatura do quarto, mais fria. Foi até a cômoda,
abriu a gaveta, e por pura malícia retirou dali uma Bíblia. Ela folheou, com
desdém, mas também procurando por alguma coisa, procurava por uma profetiza.
Mas tudo que conseguiu encontrar foi um parágrafo que ensinava aos homens, e
não as mulheres, como elas deveriam se comportar, e quais eram as
características de uma boa mulher. Ficou cerca de dez minutos com os olhos
pregados nas páginas amareladas, olhando o que poderia entendido muito antes.
Mas Virgínia estava obstinada, porque queria uma resposta. Segundo o trecho, em
muitas passagens, não era possível perceber se estava se falando de uma mulher mesmo ou de um jumento, uma
carga, ou uma mula. Terminou de pensar, terminou de olhar, fechou a Bíblia com
a suavidade de quem planeja uma vingança. Mesmo só de toalha, sentou-se na
escrivaninha, pegou uma folha e um lápis e escreveu no título. “ As
características de um bom Deus” – Um bom Deus é aquele que aparece quando nós
temos medo. Aquele que nos conforta do nosso medo e não nos aparece a
perturbar-nos em nossos momentos felizes. Os momentos felizes são para que nós
possamos desfrutar. Um bom Deus é aquele que não se intromete na relação entre
a mulher e o marido, e nem que atribua diferenças hierárquicas entre um e
outro. A um bom Deus é dada a característica de manter-se indiferente ao fato
de uma mulher desejar vários homens, de perder-se em luxúria pelos corpos dos
homens que vê passarem pela rua. – E esta cláusula tinha que ser bem grifada,
porque a mesma condição já era permitida aos homens. - A um bom Deus é concedida a tarefa de fazer com que nos
sintamos amados e protegidos, mesmo que não merecedores de tal amor. O bom Deus
sabe que nós somos merecedores de todo o amor que houver nesta vida, mas a ele
confere a tarefa de nos negar isso. De fazer-nos sentir pecadores, e
entregar-nos numa ração de miséria o amor que ele julgar que mereçamos. Mesmo
que no fundo ele saiba que este julgamento parte de nós mesmos e é por isso que
uns parecem ser possuidores de mais amor do que os outros. Porque assim, o
amor, se é que existe algum, nos será mais precioso, e raro. Ele está em nossas
próprias cabeças, bem o sabemos, mas confere ao bom Deus o fato de que não nos
lembremos nunca disto. E além disso, jogar com a logística brilhante de conferir a distribuição do amor uma entidade
superior dá ares de maior credibilidade a um sentimento, mesmo que ele seja
nosso mesmo. Esta cláusula confere o que se pode chamar de administração do uso
do poder a um bom Deus. Continuo e reitero, que a um bom Deus é devido fazer as
coisas fazerem sentido, por mais que não haja sentido nenhum. É conferido a um
bom Deus a habilidade de fazer com que fiquemos fantasiados com pequenas coincidências , como pessoas nos
dizendo coisas que pareciam ser para nós mesmos, pedacinhos de papel
encontrados na rua ou no bolso de uma blusa velha, imagens no céu ou na
natureza que nos façam lembrar que sim, existe algo mais do que a finitude dos
nossos corpos perecíveis. Confere a um bom Deus a característica de ser um bom
mágico. Porque não deve se mostrar e deve fazer coisas que pareçam críveis aos
nossos olhos. Por que em verdade nós sabemos que tudo o que acontece na terra
tem uma explicação plausível, mas como não são todos que entendem esta
explicação uma solução mística e miraculosa nos parece de muito bom grado. Cabe
ainda a um bom Deus felicitar os doentes com curas espetaculares e milagrosas e
também o de consolar as famílias daqueles que morreram porque as mesmas curas
não foram possíveis neste caso. Adiciona-se ainda a cláusula referente ao fato
de que nossa privacidade deverá ser respeitada. Um bom Deus não deve interferir
nas liberdades individuais postulando regras para uso e desuso do corpo, dos
pensamentos, das vontades. Este é um mau Deus. De que me adianta curar me de
uma doença ou abastar me com fortunas se me retira o direito de deitar me com
quem eu quiser ? Ou mesmo se me julga por isso. Ou mesmo se impedem homens de
se deitarem com homens e mulheres com mulheres? Um bom Deus entende que é
natural tudo o que está na natureza. E se tais coisas existem na natureza elas
são naturais e não podem portanto serem classificadas como proibidas. Um bom
Deus entende disso. Cabe portanto todas
estas qualidades a um bom Deus. Ou outros são todos maus, os outros, de nada
nos servem, e se houver só um e que não satisfizer as características de um bom
Deus, escolheremos não ficar com ele.
Assim seja,
Virgínia