terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

O reinado de Virgínia




            O espaço debaixo do chuveiro cheio de vapores não permitia uma divagação mais longa. Ela assentia inconscientemente a existência de uma civilização para além do ser corpo finito, mas tais conclusões eram de menor importância. Ali estava apenas ela, existindo, de um prazer gratuito, com as mãos fazendo espumas ao redor do corpo, acariciando o abdômen , deslizando até a nunca e depois descendo baixo-terra até os contornos do seu sexo. E ali pararam, mas em sua mente o filme mental era de um homem que ela havia visto na rua, que já conhecia, era  atendente em uma loja de peças, não tinha mais que 25 anos, ela apenas o tinha visto uma vez, e agora o encontrara novamente, numa esquina de frente. Seguiu o rapaz pela calçada, por trás, observando. A espessura dos cabelos, lisos, de um loiro acastanhado, os olhos que sorriam, os braços fortes, uma boca desenhada para o beijo, e um jeito de homem. Não um homem que tem cheiro de perfumes, mas um homem cujo próprio cheiro é uma espécie de presença, e que a deixavam deste modo como ficava, antes e depois da menstruação. Enquanto seguia o rapaz, profetizou sobre ele, desejou ser ela mesma ser Deus, e falar-lhe sobre a importância da sua beleza física, do abdômen desenhado em puro músculo, dos olhos que sorriam, das costas largas, dos sorrisos que se desmanchavam em beijos. Pensou em pará-lo, em instrui-lhe uma missão, em leva-lo para casa e deitar-se com ele. Ter dele um filho, e dizer, em um tom muito solene e profético : Vai pelo mundo e multiplica-te . Fecunda as mulheres que julgares belas. Para que a vossa descendência seja fértil de homens que sorriem com os olhos, e que servem de deleite as mulheres belas em suas camas. Porque uma vez que há a morte, que possamos criar o prazer antes disso. Que possamos encher a terra de homens belos com os quais nós possamos nos deitar. Virgínia era conhecedora das escrituras e não conseguia se lembrar por hora de nenhuma mulher profetiza, não conseguia se lembrar por hora da verdade sendo proferida com tal entonação de ordem, pela boca de uma mulher. E isso a deixou excitada, porque sentia-se dona de um poder que ela mesma se dava. As falanges dos dedos se contorciam, ondulavam e depois se acalmavam enquanto este pensamento se sucedeu, como um fio de prazer escorrendo do cérebro  para os portões do útero e depois para o chão. Enxaguou o cabelo, fechou a torneira e enrolou-se na toalha. Penteou os cabelos molhados em frente o espelho, e com a toalha enrolada um pouco acima da altura dos seios saiu para o quarto, pés no chão, livre. Dona de uma liberdade que não ousara experimentar antes andou pelo quarto deixando um rastro húmido enquanto procurava por alguma coisa. Já estava seca agora, e sentia a temperatura do quarto, mais fria. Foi até a cômoda, abriu a gaveta, e por pura malícia retirou dali uma Bíblia. Ela folheou, com desdém, mas também procurando por alguma coisa, procurava por uma profetiza. Mas tudo que conseguiu encontrar foi um parágrafo que ensinava aos homens, e não as mulheres, como elas deveriam se comportar, e quais eram as características de uma boa mulher. Ficou cerca de dez minutos com os olhos pregados nas páginas amareladas, olhando o que poderia entendido muito antes. Mas Virgínia estava obstinada, porque queria uma resposta. Segundo o trecho, em muitas passagens, não era possível perceber se estava se  falando   de uma mulher mesmo ou de um jumento, uma carga, ou uma mula. Terminou de pensar, terminou de olhar, fechou a Bíblia com a suavidade de quem planeja uma vingança. Mesmo só de toalha, sentou-se na escrivaninha, pegou uma folha e um lápis e escreveu no título. “ As características de um bom Deus” – Um bom Deus é aquele que aparece quando nós temos medo. Aquele que nos conforta do nosso medo e não nos aparece a perturbar-nos em nossos momentos felizes. Os momentos felizes são para que nós possamos desfrutar. Um bom Deus é aquele que não se intromete na relação entre a mulher e o marido, e nem que atribua diferenças hierárquicas entre um e outro. A um bom Deus é dada a característica de manter-se indiferente ao fato de uma mulher desejar vários homens, de perder-se em luxúria pelos corpos dos homens que vê passarem pela rua. – E esta cláusula tinha que ser bem grifada, porque a mesma condição já era permitida aos homens. - A um bom Deus  é concedida a tarefa de fazer com que nos sintamos amados e protegidos, mesmo que não merecedores de tal amor. O bom Deus sabe que nós somos merecedores de todo o amor que houver nesta vida, mas a ele confere a tarefa de nos negar isso. De fazer-nos sentir pecadores, e entregar-nos numa ração de miséria o amor que ele julgar que mereçamos. Mesmo que no fundo ele saiba que este julgamento parte de nós mesmos e é por isso que uns parecem ser possuidores de mais amor do que os outros. Porque assim, o amor, se é que existe algum, nos será mais precioso, e raro. Ele está em nossas próprias cabeças, bem o sabemos, mas confere ao bom Deus o fato de que não nos lembremos nunca disto. E além disso, jogar com a logística brilhante de  conferir a distribuição do amor uma entidade superior dá ares de maior credibilidade a um sentimento, mesmo que ele seja nosso mesmo. Esta cláusula confere o que se pode chamar de administração do uso do poder a um bom Deus. Continuo e reitero, que a um bom Deus é devido fazer as coisas fazerem sentido, por mais que não haja sentido nenhum. É conferido a um bom Deus a habilidade de fazer com que fiquemos fantasiados  com pequenas coincidências , como pessoas nos dizendo coisas que pareciam ser para nós mesmos, pedacinhos de papel encontrados na rua ou no bolso de uma blusa velha, imagens no céu ou na natureza que nos façam lembrar que sim, existe algo mais do que a finitude dos nossos corpos perecíveis. Confere a um bom Deus a característica de ser um bom mágico. Porque não deve se mostrar e deve fazer coisas que pareçam críveis aos nossos olhos. Por que em verdade nós sabemos que tudo o que acontece na terra tem uma explicação plausível, mas como não são todos que entendem esta explicação uma solução mística e miraculosa nos parece de muito bom grado. Cabe ainda a um bom Deus felicitar os doentes com curas espetaculares e milagrosas e também o de consolar as famílias daqueles que morreram porque as mesmas curas não foram possíveis neste caso. Adiciona-se ainda a cláusula referente ao fato de que nossa privacidade deverá ser respeitada. Um bom Deus não deve interferir nas liberdades individuais postulando regras para uso e desuso do corpo, dos pensamentos, das vontades. Este é um mau Deus. De que me adianta curar me de uma doença ou abastar me com fortunas se me retira o direito de deitar me com quem eu quiser ? Ou mesmo se me julga por isso. Ou mesmo se impedem homens de se deitarem com homens e mulheres com mulheres? Um bom Deus entende que é natural tudo o que está na natureza. E se tais coisas existem na natureza elas são naturais e não podem portanto serem classificadas como proibidas. Um bom Deus entende disso.  Cabe portanto todas estas qualidades a um bom Deus. Ou outros são todos maus, os outros, de nada nos servem, e se houver só um e que não satisfizer as características de um bom Deus, escolheremos não ficar com ele.

Assim seja,


Virgínia