segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Mariana






Ela tinha 5 anos. Tinha os olhos castanhos, as bochechas rosadas e uma fita vermelha no cabelo. Estava hoje de passeio na casa da avó. Pediu lápis, tesoura, papel e revistas.  “ - Tesoura eu dou, mas só se for sem ponta. Você toma cuidado? ” E como a menina assentiu com a cabeça o material foi de pronto entregue. Esparramou-se no chão e começou a organizar o seu ateliê. Tinha uma autoridade notável sob o seu pequeno império de recortes  e gravuras.  A mãe sentou-se no sofá, cruzou as pernas, suspirou. Estava cansada do sol quente da rua. Para distrair-se ficou vendo a filha brincar. O vestido rendado era branco, iria ficar sujo. Mesmo assim a mãe consentiu que brincasse como ela mesma brincaria se tivesse de novo seus cinco anos. Cansada, pegou no sono. O que se passou foi mais ou menos uma hora. Quando acordou viu a menina concentrada como nunca ela havia se concentrado antes. Havia recortado uma figura, o retrato de uma mulher. Dedicava-se então com zelo primoroso a aparar as bordas e a pregar ao redor flores e passarinhos que ela mesma tinha desenhado e pintado. O contorno dos recortes era bastante imperfeito, mas o conteúdo era o que mais importava. A menina sabia bem disso. Na parte de trás colava agora um papel mais grosso para dar sustentação ao retrato. A mãe estava tão entretida no trabalho de artesã da menina, que quase não percebeu de quem era o rosto que tinha sido escolhido pra recorte. Só quando chegou mais perto viu que se tratava de uma foto em preto e branco de Clarice Lispector,  quando jovem. Ela tinha uma expressão  doce e sorria. Olhava para baixo com aquele olhar marcado que era só dela mesmo. Ao que tudo indica estaria escrevendo enquanto era fotografada. O retrato era modesto, pra caber no bolso da calça, mas com a decoração da moldura tinha se transformado numa pequena obra de arte.
-  Quem é essa moça, Mariana ? – perguntou a mãe.
- É uma moça bonita – respondeu a menina., com ares de autoridade.
- E o que é isso que você está fazendo com o retrato ?
- É pra Vovó, é uma surpresa pra Vovó. Me ajuda a fazer um embrulho ?
A mãe não se preocupou em qual seria a  motivação do presente. “As crianças tem disso mesmo”,  ela pensou. Sentou-se com a filha e juntas as duas embrulharam  o retrato em um papel azul, depois em outro amarelo e por cima passaram uma fita vermelha fazendo um laço pra dar acabamento. E porque já fosse então a hora da surpresa elas chamaram pela avó , que veio da cozinha, de prontidão, secando nas mãos um prato.
- Mãe, a Mariana tem um presente pra você – e disse isto piscando com o olho esquerdo na esperança de uma leitura facial em que fosse entendido: “Diz que está bonito.”
A menina ficou de pé, segurou o papel colorido e espichou os bracinhos para entregar o presente. A avó  abriu o embrulho, curiosa. Tirou primeiro a fita, depois um papel e depois o outro.  Pegou o retratinho emoldurado na mão, virou de um lado e do outro pra se certificar que era tudo aquilo mesmo o presente. Depois abriu-se num sorriso: quase natural, quase forçado.
- Que lindo, minha filha, foi você que fez ?
- Foi eu. Foi eu quem fiz. – e ela disse isso já esperando por uma reação.
- A vovó vai colocar na parede do quarto, ou então na geladeira, vai ficar bonito.
Ao ouvir aquilo a menina encheu-se então de indignação , cruzou os bracinhos pequenos, franziu a testa e disse:
- Não é pra por na parede, é para a senhora rezar pra ela.
- Rezar pra ela ? Mas quem é essa moça , Mariana?
- É uma moça bonita. A senhora pode rezar pra ela também.
A mãe foi a primeira que entendeu tudo.  A avó tinha santinhos espalhados pelo quarto, todos próximos de um pequeno altar do lado da cama onde ela orava antes de dormir. Santa Edwirges, Santa Bárbara , Santa Rita, além de muitas versões de  Nossa Senhora e também outras que ela nem mesmo sabia quem eram.
- Mas a gente só reza para as Santas, meu bem. Essa moça aqui não é Santa. – porque a avó nem mesmo sabia quem a moça era.
A menina contiuava indignada, uma parte do seu pequeno coração agora se partia em dois porque não conhecia antes o que era um sentimento de rejeição.
- A vovó gostou muito, e vai colocar na geladeira, com dois magnetos um de cada lado.
Mas aquilo não era o bastante. A menina fez como se tivesse aceitado a solução, mas só para que assim o assunto morresse logo. Mais tarde, depois que mais adultos chegaram e quando estavam todos na sala de visitas conversando e tomando café ela foi até a cozinha. Apoderou-se de uma cadeira alta , escalou-a habilmente e mesmo assim teve que ficar bem na ponta dos pés para alcançar o retrato . Ela estava roubando o seu próprio presente. Sentia que era isto que deveria fazer, era o preço que a avó pagaria por ter ferido seu coração. Uma mágoa como aquela só seria paga com tal atitute. Com as pontas dos dedos pegou o retratinho e enfiou dentro da pequena bolsa que trazia pendurada a tira colo. O crime estava feito.
Um tempo mais tarde, ao cair da noite, depois que a parentada toda havia se recolhido, Mariana agora dormia. A mãe saiu do banho e andou pela casa silenciosa  recolhendo os brinquedos. Encontrou do lado da cama, jogada no chão, a pequena bolsa que trazia dentro a relíquia do furto da tarde. Num gesto involuntário ela abriu a bolsa e lá encontrou o retrato. Pensou apenas em guardar em outro lugar,  mas ao invés disso segurou  o presente na mão, sentou-se na beira da cama, e ficou olhando para ele. A mãe era professora, tinha estudado e lido muito Clarice Lispector na faculdade. Não por obrigação, mas por puro prazer. Ficou intrigada em como ela nunca havia pensado em rezar para Clarice Lispector antes. Sentiu um pouco de culpa por este pensamento, mas já que tinha começado, deixou que ele nascesse dentro dela, de dentro para fora, como uma planta estrangeira crescendo numa mata virgem. Pensou mais adiante. A pergunta não era necessariamente porque ela não havia nunca rezado pra Clarice Lispector, mas porque, em algum momento, achou que fosse uma boa ideia ter rezado pra Nossa Senhora? Quem era essa Maria, que ela nem mesmo conhecia? Que mulher era essa, que com ela nunca havia falado? E se era ou não era virgem ? Que diferença fazia isto ? Era uma santa de barro apenas, enfeitando as igrejas e as casas das velhas. E ainda que fosse ou que tivesse sido, algum dia, pessoa de carne e osso, como é que ela salvaria um vivente qualquer? Porque não havia, que ela soubesse,  palavra de salvação nenhuma proferida da boca da santa que a pudesse levar a um lugar mais espiritual que o seu corpo físico perecível. Era simples assim, aquela ideia não transcendia a nada. Não tinha nada contra a santa, bem sabia. Respeitava as religiões e as crenças.  Achava bom que se sentissem bem ao orar para Santa Maria. Só pensava que para ela não poderia haver no mundo, nada mais impessoal e sem sentido do que isto. Não pensava o mesmo entretanto quando imaginava-se orando pra Clarice Lispector. Porque Clarice é que era de carne e osso, mais humana e nossa, mais sincera e verdadeira. Porque Clarice é que de nós mais se aproximou ao ser honesta quando falava sobre o desespero de estar viva num corpo humano e finito. Porque apenas Clarice tinha sido a amiga verdadeira e fiel e declarar-se abertamente para todos nós, ao falar sobre a sua dor de estar no mundo. Ao falar sobre isto sem pudor nenhum. Porque os seus personagens  eram uma maneira muito educada de fazer existir um véu de fumaça por trás do qual estava ela mesma.  Porque Santa nenhuma a salvaria, Santa nenhuma. Mas uma página bem escrita do Livro dos Prazeres, um parágrafo ou outro da Paixão segundo GH, esta ou aquela estória dos contos de Felicidade Clandestina, todas elas a aproximavam disto que é o incômodo associado ao fato de estar no mundo.  Clarice não tinha pudor nenhum. E oferecia o seu próprio corpo e a sua própria alma como banquete farto para a nossa salvação. Não se lê Clarice Lispector. De Clarice se bebe e se come, da carne e do sangue, com tamanha fome espiritual que só pode ser saciada com sinceridade, com sinceridade pura de quem não tem vergonha de ter nascido num mundo, filha de pai e mãe, mas órfã de si mesma. Quem era Clarice ? Ela não sabia, mas sabia que a amava, amava como um padre ama a Cristo ou uma freira ama a Maria, assim ela amava a Clarice. “Mas que bobagem – pensava a mãe. – Não se pode amar a quem não se conhece, a quem nunca se viu e a quem nunca se tocou” Mas é, mesmo assim ela amava, e era só esse amor que a fazia entender o  significado de uma palavra espiritual qualquer que fosse. Porque Clarice e Maria, a nenhuma delas ela conhecia, mas apenas uma delas a trazia essa licença boa de morrer em paz , só uma delas lhe dava essa permissão de não ser mais sozinha no mundo. Ela se arrependeu de não ter, muito antes, quanto sentira medo e solidão, rezado para  Clarice Lispector. “Oh Meu Deus, porque é que não nos fizeste com a sabedoria das crianças?” Mais uma vez olhou pra Mariana na cama, passou lhe a mão nos cabelos cacheados e suspirou de alívio. Porque enquanto houverem crianças no mundo nós ainda teremos uma chance de aprender da nossa mais pura simplicidade de espírito. Abriu a gaveta da cômoda e tirou um livro, colocou em baixo do braço, despediu-se mais uma vez da filha e apagou a luz. Foi para o seu quarto e só de camisola sentou-se na  cama. De canto apenas uma luz fraca do abajour iluminava tudo. Era o suficiente. Com os olhos debruçados sobre o silêncio estático das páginas amareladas, a mãe, em puro êxtase de estar viva, iria orar pela primeira vez...


 Yuri Volpato, 17 de Outubro de 2016.





quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Andréia

Pensou então que merecia pedir mais vida. Porque era tarde e fazia um calor enorme. Mas um calor largo e bom , começando na superfície da pele e se conectando, multidimensionalmente, com tudo que existe. Era já quase noite e a mulher estava na janela. Os olhos miravam as planícies longínquas. A chuva começava a nascer no horizonte dentro dos orgasmos dos trovões. Mas por enquanto só relampejos, jatos de luz. E o calor era ainda mais intenso, forte como é forte a mão de um homem, um calor insaciável tocando nela toda, quem sabe, querendo-a também. Uma gota de suor começava a se formar, pura, límpida, virgem, partindo do nascimento dos seios. E estes, agora mais a vontade, entumecidos, cresciam de puro gozo natural, cheios de malícia, porque eram parte dela.  Andréia então acendeu um cigarro. E porque a boca estava seca abriu uma taça de vinho. Bebeu direto do gargalo. O vidro frio tocava os seus lábios, e o que vinha de dentro da garrafa escorria para dentro dela, refrescando-a.  O que era isso que sentia, todas as vezes que bebia e fumava, assim, só de camisola, na beira da janela? Que liberdade é essa que parecia rondá-la como um animal manso a procura de carinho ? A garrafa de vinho vinha e ia a medida que o cigarro também ia se apagando e outro era acesso. Mais um, mais outro. Os dedos finos e compridos  seguravam o bastão branco em brasa. Ela tragava e o papel se virava em fumaça dentro dela. Que força seria essa, da vida, sempre a consumindo, sempre a testando, sempre tirando um pedaço ou senão tudo dela, pra não devolver mais ? 
            Em epifania se viu na boca de Deus, em epifania e epifania mesmo porque aquilo tudo não podia ser realidade se viu tragada por um universo-Deus-pulmão em que o cigarro era ela.   E ainda por cima, a dor, aguda , no peito.  Que espécie de amor era esse que ela não estava se dando? O que é que significava se amar a final ? Pensou que compreendera. Cuidava de si mesma, ia ao cabelereiro, fazia dieta, praticava exercidos, pensou que sim, que se amava. Mas então porque a dor ? Porque a sensação de abandono? De falta de esperança, de uma falta gigante que ela mesma nem sabia do quê. "Eu quero amar a mim, porque eu sou boa, porque tenho um enorme coração porque sou dedicada a e me esforço para fazer tudo para os outros" . Enumerou qualidades, percorreu adjetivos, pediu a opinião de amigos, escreveu, e tentou lembrar. Não conseguia, entretanto. Não sabia o que estava faltando.

E porque a dor era tamanha e o calor aumentara, pensou que talvez estivesse faltando amar uma coisa que ela não queria ver. Ou mais que isso, que não gostava nela. "É preciso uma coragem enorme para amar quem se é" - ela pensou. E porque pedia então mais vida, sem saber o que a vida era, tirou a roupa e foi para a frente do espelho. Sentou-se numa cadeira. O espelho largo, grande, se esparramava verticalmente na frente dela. Tentou despir-se primeiramente de uma vaidade, mas não era possível. Estava sentada agora nua, com as pernas  ligeiramente abertas, os cabelos negros soltos por cima dos seios. As pulseiras muitas no pulso esquerdo e um cigarro ainda aceso na mão direita. Quem Andreia, quem é que vai te amar se não você primeira ? Mas que amor era esse ? Que amor era esse que ela não entendia? Fazia agora um esforço intelectual enorme para entende-lo mas ele não vinha, não vinha jeito nenhum , a solução, ou o amor  recusava-se a aparecer.  Era como um problema muito difícil de matemática. E porque ela se cansava então de pensar, suspirou. Tragou de novo o cigarro, pensou em desistir, olhou para o chão, e lhe ocorreu que o amor que ela buscaria não era pensado, seria sentido, e seria sem razão nenhuma. Porque era somente assim que ela poderia admitir um amor olhou para a parte do seu corpo que menos gostava. O baixo abdômen, onde alguma gordura se acumulava, não muita, apenas um pouco, nada que pudesse ser notado com um vestido que não fosse muito justo, mas o suficiente para feri-la, o suficiente para incomodá-la. E porque já tinha achado o primeiro defeito continuou investigando-se ainda mais e percebeu que também não gostava do formato do seu nariz: era redondo demais na ponta. E as orelhas, podiam ser menores.  Não, não seria hoje, ela ainda não estava pronta para nascer, a jornada seria longa e a  criança estava ainda prematura . E porque pensou nisso riu. E ao olhar no seu sorriso, gostou, e se apaixonou. Tinha sido pega de surpresa. E porque achou aquilo bonito continuou com a expressão de felicidade no rosto. Não seria agora, não seria assim, tão espontaneamente. Mas ficou com aquela ideia na cabeça, pensou que um dia ela estaria pronta para amar aquela mulher que sorri ao lembrar das suas imperfeições. Pensou que felicidade seria quando pudesse se amar sendo ela mesma. Pensou em quantas pessoas ela também poderia amar por serem elas mesmas. E agora já viajava, percorria o mundo com seu pensamento, abraçava as pessoas pela orla ensolarada das praias, viajava toda a América do Sul de bicicleta, abraçando, amando e rindo. Ia pra China, pros Estados unidos pra Escandinávia, percorria o mundo amando os seres humanos do jeito que eles fossem: imperfeitos. E tudo isto sentada na frente da sua cadeira, em frente ao espelho. Por um momento odiou que houvessem pessoas perfeitas, odiou que houvesse uma ideia de beleza a ser seguida como uma religião qualquer.  Sentiu muita raiva porque queria que houvesse apenas a espontaneidade natural de seres humanos errando, aprendendo, amando e rindo do fato de não estarem prontos para coisa nenhuma. Mas afinal, quem ela odiava ? E porque não queria carregar a culpa de estar odiando uma parte da humanidade assumiu que era ela apenas, que odiava. Ela, mulher humana. Pronto. Tinha passado. Voltara para ao estado natural. Mas, tinha sido um começo bom, tinha sido uma aproximação. Era bom , de vez em quando , namorar essa mulher nua no espelho . Era bom querer a vida mesmo que ela não soubesse o que a vida era.


YVS 06-10-2016