Ela tinha 5 anos. Tinha
os olhos castanhos, as bochechas rosadas e uma fita vermelha no cabelo. Estava
hoje de passeio na casa da avó. Pediu lápis, tesoura, papel e revistas. “ - Tesoura eu dou, mas só se for sem ponta. Você
toma cuidado? ” E como a menina assentiu com a cabeça o material foi de pronto
entregue. Esparramou-se no chão e começou a organizar o seu ateliê. Tinha uma
autoridade notável sob o seu pequeno império de recortes e gravuras.
A mãe sentou-se no sofá, cruzou as pernas, suspirou. Estava cansada do
sol quente da rua. Para distrair-se ficou vendo a filha brincar. O vestido
rendado era branco, iria ficar sujo. Mesmo assim a mãe consentiu que brincasse como ela mesma brincaria se tivesse de novo seus cinco anos. Cansada, pegou no
sono. O que se passou foi mais ou menos uma hora. Quando acordou viu a
menina concentrada como nunca ela havia se concentrado antes. Havia recortado
uma figura, o retrato de uma mulher. Dedicava-se então com zelo primoroso a
aparar as bordas e a pregar ao redor flores e passarinhos que ela mesma tinha
desenhado e pintado. O contorno dos recortes era bastante imperfeito, mas o
conteúdo era o que mais importava. A menina sabia bem disso. Na parte de trás
colava agora um papel mais grosso para dar sustentação ao retrato. A mãe estava
tão entretida no trabalho de artesã da menina, que quase não percebeu de quem
era o rosto que tinha sido escolhido pra recorte. Só quando chegou mais perto
viu que se tratava de uma foto em preto e branco de Clarice Lispector, quando jovem. Ela tinha uma expressão doce e sorria. Olhava para baixo com aquele olhar marcado que era só dela
mesmo. Ao que tudo indica estaria escrevendo enquanto era fotografada. O
retrato era modesto, pra caber no bolso da calça, mas com a decoração da
moldura tinha se transformado numa pequena obra de arte.
- Quem é essa moça, Mariana ? – perguntou a
mãe.
- É uma moça bonita –
respondeu a menina., com ares de autoridade.
- E o que é isso que você
está fazendo com o retrato ?
- É pra Vovó, é uma surpresa
pra Vovó. Me ajuda a fazer um embrulho ?
A mãe não se preocupou
em qual seria a motivação do presente. “As
crianças tem disso mesmo”, ela pensou. Sentou-se
com a filha e juntas as duas embrulharam o retrato em um papel azul, depois em outro
amarelo e por cima passaram uma fita vermelha fazendo um laço pra dar
acabamento. E porque já fosse então a hora da surpresa elas chamaram pela avó ,
que veio da cozinha, de prontidão, secando nas mãos um prato.
- Mãe, a Mariana tem um
presente pra você – e disse isto piscando com o olho esquerdo na esperança de
uma leitura facial em que fosse entendido: “Diz que está bonito.”
A menina ficou de pé,
segurou o papel colorido e espichou os bracinhos para entregar o presente. A
avó abriu o embrulho, curiosa. Tirou
primeiro a fita, depois um papel e depois o outro. Pegou o retratinho emoldurado na mão, virou de
um lado e do outro pra se certificar que era tudo aquilo mesmo o presente. Depois
abriu-se num sorriso: quase natural, quase forçado.
- Que lindo, minha filha,
foi você que fez ?
- Foi eu. Foi eu quem
fiz. – e ela disse isso já esperando por uma reação.
- A vovó vai colocar na
parede do quarto, ou então na geladeira, vai ficar bonito.
Ao ouvir aquilo a menina encheu-se então de indignação ,
cruzou os bracinhos pequenos, franziu a testa e disse:
- Não é pra por na parede, é para a senhora rezar pra ela.
- Rezar pra ela ? Mas quem é essa moça , Mariana?
- É uma moça bonita. A senhora pode rezar pra ela também.
A mãe foi a primeira que
entendeu tudo. A avó tinha santinhos
espalhados pelo quarto, todos próximos de um pequeno altar do lado da cama onde
ela orava antes de dormir. Santa Edwirges, Santa Bárbara , Santa Rita, além de
muitas versões de Nossa Senhora e também
outras que ela nem mesmo sabia quem eram.
- Mas a gente só reza
para as Santas, meu bem. Essa moça aqui não é Santa. – porque a avó nem mesmo
sabia quem a moça era.
A menina contiuava
indignada, uma parte do seu pequeno coração agora se partia em dois porque não
conhecia antes o que era um sentimento de rejeição.
- A vovó gostou muito, e
vai colocar na geladeira, com dois magnetos um de cada lado.
Mas aquilo não era o
bastante. A menina fez como se tivesse aceitado a solução, mas só para que
assim o assunto morresse logo. Mais tarde, depois que mais adultos chegaram e
quando estavam todos na sala de visitas conversando e tomando café ela foi até
a cozinha. Apoderou-se de uma cadeira alta , escalou-a habilmente e mesmo assim
teve que ficar bem na ponta dos pés para alcançar o retrato . Ela estava
roubando o seu próprio presente. Sentia que era isto que deveria fazer, era o
preço que a avó pagaria por ter ferido seu coração. Uma mágoa como aquela só
seria paga com tal atitute. Com as pontas dos
dedos pegou o retratinho e enfiou dentro da pequena bolsa que trazia pendurada
a tira colo. O crime estava feito.
Um tempo mais tarde, ao
cair da noite, depois que a parentada toda havia se recolhido, Mariana agora
dormia. A mãe saiu do banho e andou pela casa silenciosa recolhendo os
brinquedos. Encontrou do lado da cama, jogada no
chão, a pequena bolsa que trazia dentro a relíquia do furto da tarde. Num gesto
involuntário ela abriu a bolsa e lá encontrou o retrato. Pensou apenas em
guardar em outro lugar, mas ao invés disso segurou
o presente na mão, sentou-se na beira da cama, e ficou olhando para ele.
A mãe era professora, tinha estudado e lido muito Clarice Lispector na
faculdade. Não por obrigação, mas por puro prazer. Ficou intrigada em como ela
nunca havia pensado em rezar para Clarice Lispector antes. Sentiu um pouco de
culpa por este pensamento, mas já que tinha começado, deixou que ele nascesse
dentro dela, de dentro para fora, como uma planta estrangeira crescendo numa mata
virgem. Pensou mais adiante. A pergunta não era necessariamente porque ela não
havia nunca rezado pra Clarice Lispector, mas porque, em algum momento, achou
que fosse uma boa ideia ter rezado pra Nossa Senhora? Quem era essa Maria, que
ela nem mesmo conhecia? Que mulher era essa, que com ela nunca havia falado? E
se era ou não era virgem ? Que diferença fazia isto ? Era uma santa de barro apenas, enfeitando as igrejas e as casas das velhas. E ainda que fosse ou
que tivesse sido, algum dia, pessoa de carne e osso, como é que ela salvaria um
vivente qualquer? Porque não havia, que ela soubesse, palavra de salvação nenhuma proferida da boca
da santa que a pudesse levar a um lugar mais espiritual que o seu corpo físico
perecível. Era simples assim, aquela ideia não transcendia a nada. Não tinha nada contra a santa, bem sabia. Respeitava as religiões e
as crenças. Achava bom que se sentissem
bem ao orar para Santa Maria. Só pensava que para ela não poderia haver no mundo,
nada mais impessoal e sem sentido do que isto. Não pensava o mesmo entretanto
quando imaginava-se orando pra Clarice Lispector. Porque Clarice é que era de
carne e osso, mais humana e nossa, mais sincera e verdadeira. Porque Clarice é
que de nós mais se aproximou ao ser honesta quando falava sobre o desespero de
estar viva num corpo humano e finito. Porque apenas Clarice tinha sido a amiga
verdadeira e fiel e declarar-se abertamente para todos nós, ao falar sobre a
sua dor de estar no mundo. Ao falar sobre isto sem pudor nenhum. Porque os seus
personagens eram uma maneira muito educada de fazer existir um véu de fumaça por trás do qual estava ela mesma.
Porque Santa nenhuma a salvaria, Santa nenhuma. Mas uma página bem
escrita do Livro dos Prazeres, um parágrafo ou outro da Paixão segundo GH, esta
ou aquela estória dos contos de Felicidade Clandestina, todas elas a aproximavam
disto que é o incômodo associado ao fato de estar no mundo. Clarice não tinha pudor nenhum. E oferecia o
seu próprio corpo e a sua própria alma como banquete farto para a nossa
salvação. Não se lê Clarice Lispector. De Clarice se bebe e se come, da carne e
do sangue, com tamanha fome espiritual que só pode ser saciada com sinceridade,
com sinceridade pura de quem não tem vergonha de ter nascido num mundo, filha
de pai e mãe, mas órfã de si mesma. Quem era Clarice ? Ela não sabia, mas sabia
que a amava, amava como um padre ama a Cristo ou uma freira ama a Maria, assim
ela amava a Clarice. “Mas que bobagem – pensava a mãe. – Não se pode amar a
quem não se conhece, a quem nunca se viu e a quem nunca se tocou” Mas é, mesmo
assim ela amava, e era só esse amor que a fazia entender o significado de uma palavra espiritual qualquer que fosse. Porque
Clarice e Maria, a nenhuma delas ela conhecia, mas apenas uma delas a trazia essa licença boa de morrer em paz , só uma delas lhe dava essa
permissão de não ser mais sozinha no mundo. Ela se arrependeu de não ter, muito
antes, quanto sentira medo e solidão, rezado para Clarice Lispector. “Oh Meu Deus, porque é que
não nos fizeste com a sabedoria das crianças?” Mais uma vez olhou pra Mariana
na cama, passou lhe a mão nos cabelos cacheados e suspirou de alívio. Porque
enquanto houverem crianças no mundo nós ainda teremos uma chance de aprender da
nossa mais pura simplicidade de espírito. Abriu a gaveta da cômoda e tirou um
livro, colocou em baixo do braço, despediu-se mais uma vez da filha e apagou a
luz. Foi para o seu quarto e só de camisola sentou-se na cama. De canto
apenas uma luz fraca do abajour iluminava tudo. Era o suficiente. Com os olhos
debruçados sobre o silêncio estático das páginas amareladas, a mãe, em puro êxtase
de estar viva, iria orar pela primeira vez...