Toda uma externalização… Uma dicotomia,
interrompida por soluços parasitários. Porque tudo que existe do lado de dentro
acaba de uma forma ou de outra se esparramando um pouco pro lado de fora. Uma
vez eu tive um sonho, eu chegava bem perto do muro de um castelo. Mas o portão
de entrada era desconhecido e os muros eram altos, e o interior do castelo era
de meu profundo interesse e curiosidade. Eu dava voltas e voltas sempre mirando
os muros altos se estendendo até as nuvens sumindo dentro do céu. Eu rodeava
como rodeio agora com estas palavras, o meu atraso em dizer. Essa minha
preparação, esse útero imaginário onde eu guardo minhas palavras recém
fecundadas, essa maturação de tudo que é por enquanto semente e busca uma forma
para sair do lado de fora sem tomar por um susto demasiado grande a plateia, os
ouvintes e quem sabe eu mesmo. Suspeito que todo o viver seja isso, uma
camuflagem, uma ilusão necessária por baixo da qual escondemos todas as nossas
mentiras, que postas juntas desde as bases de suas fundações constituam a grande
verdade. Verdade essa que não nos pode ser mostrada de uma vez porque
enlouqueceríamos. Nós temos chamado de lucidez o que é a nossa dissimulação
diária e perpétua, nós temos aprendido a dissimular assim que deixamos de ser
crianças. Crescer é isto, é o aprendizado de todas as distorções e disfarces
que tornam a nossa vida possível. Para escapar da dor de estar vivo nós nos chamamos
de muitas coisas. Nós nos ocupamos e nos distraímos por isso não é de nosso agrado
nos olharmos muito tempo fixamente nem estarmos sozinhos, não é de nosso agrado
porque poderia ser que nos fizesse acordar de uma vez por todas da mentira por
detrás da qual nos escondemos. E não saberíamos como principiar de outro modo,
não saberíamos viver sem disfarce, por isso também não é de nosso agrado que andemos sem roupas pela
rua. O nosso pudor original é esse, pra que escapemos da vergonha do nosso sexo,
que é a fonte criadora de nossa raça… Mas, o que é que eu queria dizer mesmo?
Vejo que estou mais uma vez dissimulando. Mas é melhor mesmo principiar assim,
sem demonstrar nenhum interesse. Toda vez que eu quero me aproximar do castelo
ele todo se reorganiza e recomeça um novo plano, para que eu não o perceba,
para que eu não seja vitorioso em encontrar o portão de entrada. É preciso, no
entanto, que o castelo não saiba que me interessa entrar e desta forma não
esconda de mim a porta. Mas isto eu também já tentei, e foi em vão. Por mais
que eu ande pelas suas redondezas, sem nada procurar, o portão também não me
aparece. É inútil. Penso que talvez o castelo, ou seus moradores, possam mágica
ou realmente ler meus pensamentos. É preciso que eu esqueça de quem eu era
quando estava tentando entrar, é preciso que eu me esqueça de mim mesmo, de
todas as minhas aspirações e planos e cobiças, é preciso que eu me limpe do
desejo sujo de entrar pelos portões que eu mesmo nunca vi. Mas então, quem
serei eu se eu não quiser mais entrar? Encontrar a porta tinha sido até agora a
minha motivação para vida. As estruturas que que me sustentavam como um ser
vivo, ainda que tremendo de dor, mas vivo, cheio de medo e de sangue, mas ainda
assim vivo, vibrando, tremendo, vivo… Qual seria então a finalidade do plano? A
total morte da vontade? A total entrega? De quantas partes de mim eu teria que
me desfazer, quantos membros meus eu teria que cortar, friamente, serrar com a
faca e o serrote para não ser percebido? Como eu poderia me reduzir a uma
unidade mínima para não ser mais reconhecido como indivíduo possuidor daquele
desejo? Quão fundo eu teria que cavar dentro das minhas veias para achar onde
se escondia a malícia deflagradora de querer achar a porta? Será, que, talvez
depois de despido de toda intenção, será que talvez depois de ouvir o som das
minhas muralhas e pontes internas se arrebentando... será que somente ao beber
do último fio fino da vida é que de surpresa em minha frente uma porta
apareceria, revestida de luz e um convite a mim seria feito em uma voz
celestial “Vem, que eu te mostrarei as coisas que devem acontecer depois destas?”
Mas eu temo que até mesmo esta última esperança me fizesse ser percebido e
descoberto, como um vagalume que estivesse sempre acesso e estivesse pra sempre
preso dentro da noite. Resolvi então ficar do lado de fora, sentado na grama,
de costas pros muros e olhando o horizonte. Quem sabe talvez também pudesse ser
possível viver do lado de fora e não entrar nunca? Quem sabe eu já esteja vivendo
dentro de um castelo maior que eu desconheço? A vontade de querer entrar foi o
primeiro vírus que me infectou e do qual eu tenho que me curar. Pra me libertar
do desejo de querer estar dentro de algum lugar. Ou talvez o castelo exista
dessa forma para que eu possa aprender alguma coisa com ele? Talvez a porta não
exista nunca, e seja apenas uma fortaleza sem porta… Talvez ela seja vazia por
dentro ? Talvez exista somente do lado de fora e simplesmente não exista por
dentro? Que tolice a nossa é pensar que tudo o que existe tem de ter dois
lados… Só porque a nossa experiência sensorial nos diz que assim deve ser… Ou
quem sabe o castelo seja apenas metáfora de coisa maior? … quem sabe do amor em
si ? É tão mais fácil amar as pessoas inofensivas e indefesas, aquelas que por
pura ingenuidade e pureza de espírito nunca sonharam com a existência de uma
porta. É preciso não se saber que está sendo amado para ser amado, é preciso
não procurar pela porta do amor para encontrá-la.