“...fazia
frio naquele fim de tarde do mês de maio do ano de 2012. O dia no hospital
tinha sido pesado. Dentro do carro, no caminho de volta, eu vim pensando na vida, não só na minha, mas
na dos outros também. Era um sentimento estranho que eu nunca tinha percebido
ter antes. Uma espécie de premonição do que estava pra acontecer nas próximas
horas. Cheguei em casa, joguei a bolsa no sofá, deixei as panelas em fogo baixo
esquentando a janta e fui tomar um banho. Um costume que eu tenho é deixar a
televisão ligada enquanto vou pro chuveiro. Não gosto do barulho da casa vazia. Eu fui
deixando as minhas preocupações de lado enquanto a água quente me acalmava.
Lavei a cabeça, passei condicionador, enxuguei-me e enrolei-me na toalha , como
faço sempre. Quando abri a porta que dava pro quarto eu pude perceber ao fundo
a voz grossa e imponente de um homem que falava na televisão. Assim só com a
toalha enrolada na altura dos seios eu saí para o quarto e comecei a ser
atraída pelo ar de autoridade que vinha da entonação viril do homem que falava.
Ele usava um terno bege e uma camisa social branca com o primeiro botão aberto.
Não era bonito. Não era feio também, mas me atraía. Eu sei apenas que me atraía,
diria melhor, me intrigava. Sentei-me na
cama e comecei a sentir-me mais confortável com aquela presença masculina que
agora alcançava meus sentidos. E porque eu gostasse do tom do discurso comecei
a ouvir prestando mais atenção. Ele falava de Deus. Mas não falava de um Deus apenas. Não falava
do Deus que até então eu conhecia, singular e bom, e também austero quando
necessário. Ele não falava do Deus que eu havia aprendido ser Deus. Não falava
sobre o Deus que me ensinaram nas primeiras aulas de catequese, no auge dos
meus 11 anos, no Colégio Santa Dorotéia. Não falava do Deus compassivo, amoroso
e justo, falava entretanto de várias personalidades de um mesmo Deus se
alterando em diversos momentos da história. Falava de um Deus que era diferente
a medida que os homens era também diferentes. Discorria sobre um criador com
uma personalidade quase humana, mudando de ideia e de humor conforme lhe fosse
aprazível. Talvez, eu pensei, não fosse uma personalidade quase humana. Mas humana de fato. Talvez, e apenas talvez, aquele
Deus sobre o qual o homem discorria fosse apenas uma projeção dos medos,
desejos e aspirações não de Deus, mas dos homens mesmo.
“...não de
Deus, mas dos homens mesmo...” Quando
pensei isto um susto se apoderou de mim. Quem estava sendo eu então, naquele
momento? Ou melhor, quem eu havia sido antes, todo este tempo ? Como é que eu
nunca tinha sido capaz de traçar sozinha essa linha lógica que correlacionava
os dois fatos? Como é que eu não tinha sido capaz de sozinha compreender Deus
como a obra prima da criação humana e não o contrário ? E não o contrário,
Maria Lúcia, nunca o contrário ! Era um misto de medo e prazer, euforia e
indignação. Era de uma curiosidade mansa que o meu espírito todo se desdobrava
como as pétalas de uma flor nascendo também se desdobram e se voltam para fora,
encarando uma natureza verde, uma natureza viva, encarando aquilo que parecia
finalmente ser o coração selvagem da vida. Era o âmago de uma experiência que
só pode ser genuína para o vivente que a saboreia de súbito: crua, palpitando
como a artéria exposta onde corre o sangue vermelho, o sangue escarlate. Vivo e
vermelho como o coração se apresentando pela primeira vez diante do vazio. Mas,
se eu era como esta flor, abrindo-se, eu desabrochava para dentro ou para fora?
Qual e onde era esse dentro-fora que os limites do meu espírito buscavam
empurrar? Eu fazia força mas não sabia em que direção, e afinal de contas, que paredes eram estas contra as quais eu
fazia força? Eu que me julgava conhecedora de mim e do mundo, eu que me julgava
conhecedora de todas as verdades, eu que tinha tido ate então o controle de mim
mesma me encontrava desnudada pela crueza fria de uma experiência tão forte. E
assim somente é que eu poderia defini-la, era forte e sublime ao mesmo tempo. Leandro
tinha entrado dentro de mim. Ou tinha em mim introduzido algo. O que era? Eu
não sabia, mas a medida que eu ouvia a sua voz a toalha dos meus seios se
desenrolava, fazia desenhos ao despedir-se do meu corpo e ia finalmente deitar-se
no chão. O nascimento dos meus seios agora estava a mostra, e na ponta estavam
as auréolas, pouco entumecidas, um pouco
envergonhadas. O que se passou depois eu não conseguiria lembrar, mas a presença
do homem fez se fecunda corpo da mulher fértil.
Era isto que eu era: fértil. A mulher jovem, viril e estupidamente
fértil. Eu era como terra boa esperando pra molhar e germinar as palavras que
dele vinham como sementes secas. Eu não sabia naquele momento, mas sei agora que
foi somente a minha ignorância que fez com que Karnal em mim fizesse morada. Nunca
nenhuma escolha de palavras poderia ser tão apropriada como esta. Ha milênios o
espírito santo tem feito morada no corpo imaculado das virgens. Eu havia então
postulado que em mim, também, Karnal havia se embebido. O que foi feito estava
feito.
Nos dias
que se passaram, eu procurei não pensar muito no que havia acontecido na noite
anterior. Busquei esquecer apenas. A
experiência tinha sido transformadora de tal forma que eu não pude notar as
diferenças acontecendo em mim ao correr dos dias. Mas vieram, como vem todas as
coisas que demoram, porque há tempo para tudo debaixo do céu. Eu percebi que
não estava mais sendo a mesma. Havia sentindo sintomas. Estava tonta ? Estava alucinada? Não era bem
isso. Mas era como se de repente eu os meus olhos vissem mais, os meus ouvidos
se aguçassem e a minha boca falasse em um ritmo mais sábio sobre aquilo que eu
via no mundo. Eu era revestida pouco a pouco de uma consciência brutal espalhando-se
como doença pelo meu corpo. As minhas
análises tornaram-se mais longas e menos imediatistas e os meus porquês
tornaram-se também mais refinados. Era apenas professor este homem ou também um
cirurgião sem escrúpulos? Onde quer que
eu fosse ele vinha na frente com o bisturi afiado da sua inteligência ferina
dilacerando com golpes precisos o meu misticismo e o meu sentimento de
transcendência sobre a vida. Eu me sentia tal como os corpos de Da Vinci sendo
abertos , músculo a músculo, tendão a tendão. A diferença é que eu estava viva,
vibrando de dor e êxtase enquanto ele em mim trabalhava, dia e noite, sem
descanso. O que era isso? O que isso que estava acontecendo? O que era esta
força que estava me jogando abruptamente para fora da vida ? Ah, isso também...
eu quase havia me esquecido, há ainda a minha vida, as coisas que eu faço
quando não estou sofrendo desse vazio que se instalou em mim.
Nas outras
horas eu sou médica, infectologista, atendo pacientes com HIV. Todos me contam
uma história muito parecida de como se infectaram. Dizem que foi um ato
impensado, que se arrependem daquele dia em que não se protegeram como deviam. No
consultório , ao falar com os pacientes novos vem imediatamente à minha cabeça
as cenas daquela noite de Maio e como tudo poderia ter sido diferente se eu
ligasse ou não aquela televisão. Há uma
diferença, entretanto. Meus pacientes
estão bem. Eles vão viver vidas longas e boas, com o tratamento certo. A
ciência avançou bastante. Exames só a cada três meses, um comprimido todas as
noites, nenhum efeito colateral, expectativas de vida normais. Mas e eu
Leandro, quem é que me cura de você? Quem é que me cura dessa angústia, desse
vazio, dessa doença que consome o meu corpo como peste, que consome os meus
dias, a minha esperança ? Quem espécie de vírus é você, que se alimenta do
nosso incômodo?
Ontem
nasceu a Maria Eduarda, a mãe dela é soropositiva, mas a menina não... É, a
ciência tem avançado bastante... Mas e eu Leandro, eu que nem mesmo sei se
quero mais ter filhos porque tenho medo de que após nascer eles peguem de mim
também esse incômodo que já se espalhou por mim toda... Sabe, tem um rio que
passa aqui na cidade. É bonito, tem muitas árvores e passarinhos. Eu gostava de
ir lá, todo domingo, depois da missa, e ficar sentindo o espírito de Deus. Mas
hoje , depois de você, quando eu vou lá de novo e fecho os olhos eu só sinto
frio e cheiro de mato.... Eu espero de verdade que alguém venha depois, e que
venha logo, muito logo, pra me curar de uma vez por todas disso que você
plantou em mim... pra me curar de mim mesma, assim mesmo, demais...