Eulália
saia agora do trabalho. Eram seis da tarde. Estava cansada, não fisicamente,
mas por dentro. De uns tempos para cá cometera um erro gravíssimo: decidiu
perguntar-se quem ela era e o que estava fazendo na vida. “Isso não se faz
Eulália, a gente vive é assim, um dia de cada vez, a gente ganha o hoje como
pão de cada dia” – pensou. Mas era da tarde demais. Já havia começado, e esse sentimento agora se
instalava dentro dela como doença espalhando rapidamente pelo corpo. Atingia
primeiro a cabeça, depois descia pela espinha, se alastrava pelos braços, ardia
também no pescoço, na altura da garganta. Também no peito, nas pernas, no
abdômem. Ela toda era tomada por esse sentimento pesado como armadura que a
revestia e atraída gravitacionalmente, não para o chão, mas para dentro dela
mesma. Eulália gostava da sua vida, não podia reclamar, reclamar era algo que
não fazia, já advertida do perigo. A casca dourada dos anos a ensinou a ficar
longe desses precipícios perigosos que era a instabilidade dos sentimentos.
Porque aprendeu a domesticar seus sentimentos achou que estivesse enfim livre
do Grande Mal. O médico mesmo já afirmara que ela não precisava mais de
remédios e que poderia sozinha, como ele mesmo disse, ir tomando conta do
jardim e se cuidar para não se abandonar. Mas ela sabia que o jardim era de vez
enquando floresta e os abismos que ela evitara pro tantos anos as vezes se
abriam dentro dela mesmo, como terremotos rasgando a terra sem pedir permissão.
Agora,
estava parada no ponto de ônibus, com uma sacola em uma mão olhando para um
cenário qualquer de fronte. O dia estava muito bonito, mas o céu começou a
ficar escuro e a chuva ameaçava. Sentiu-se pesada, sentiu que era hora, sentiu
que todos aqueles ensaios seriam para que uma vez a apresentação final pudesse
acontecer. Eulália iria se matar. Estava apaixonada pela ideia. As conversas
com a terapeuta a convenciam, cada vez mais, de que esse amor maior, esse amor
próprio de que tanto se fala era incondicional de uma certa forma que se
pudesse salvar a si mesma das garras sangrentas da vida, da caixa fechada de um
cotidiano a qual não se escapa. Estava convencida que esse era o grande ato de
amor que ela teria por si mesma. E pensava , como quem planeja uma grande festa,
como seria a ocasião. Lia compulsivamente sobre o assunto, porque se enchia de
coragem e paixão. Quando a paixão ou a coragem misteriosamente iam embora ela
chorava, e numa ocasião mais oportuna começava tudo outra vez.
O ônibus chegou e
ela entrou, subiu com as sacolas, mas por um descuido deixou cair algumas maças
que trazia dentro. Não se importou uma vez que as frutas rapidamente rolaram
para debaixo das rodas. Eulália sentou-se e ficou olhando para a janela
enquanto o veículo partia e pela janela pode ver pelo vidro o sumo suculento
das frutas esmagadas escorrendo da rua para a calçada. Amou as frutas mortas e agradeceu por elas a
terem feito feliz antes do trágico acidente.
Tranquilizou-se, seria assim com ela também, as pessoas sentiriam uma paz
enorme e serena depois de sua despedida. Deveria agir, ela pensou, deveria
fazer alguma coisa. Abriu a agenda que
trazia dentro da sacola e foi para a última página onde estava desenhado
como seria o seu momento final, a sua despedida. Havia um barco, solitário, a não ser pela sua
presença dentro, boiando no meio de um lago. Do lado de fora a mulher, boiando,
agarrada a proa. No fundo montanhas verdes e um mar enrome de água espalhada
por toda a parte… O ônibus parou ela desceu. “Que bobagem, que bobagem Eulália,
tire já isto da cabeça!” pensou consigo mesma, e de novo, sentiu vontade de
chorar. Atravessou a rua e rumou para a
sua casa. No caminho havia um pequeno mercado. Do lado de fora havia algumas
mudas de flor, nenhuma delas florida, mas apenas com os cachos esperando para
se irromperem em botões. Sentiu primeiramente apatia. Não gostava de flores, ou
melhor, nunca se importou de verdade com elas. Os botões estavam todos fechados
e por isso os achou de uma enorme falta de graça. Era mudas com muitas folhas
verdes, em um vaso grande e muitos botões pequeninos, todos juntos em cachos e
todos muito apáticos. Então ela olhou de novo para as flores, em estado de
dormência, e pensou que talvez ela fosse também assim, não entendia porque, mas
supôs que estivesse ela também vivendo esse processo de latência que culminaria
então num florescimento para uma coisa nova que ela ainda não sabia o que era.
Talvez fosse violento demais viver com as cores fortes das flores abertas, por
isso os botões fechados lhe pareceu aprazível. Escolheu uma muda, comprou, colocou
em um saco de estoupa e levou para casa. Eulália não pudera imaginar, mas
enquanto caminhava segurando a sacola com planta recém adotada um sentimento de
amor, muito brando e nascente, começou a apoderar-se dela. Ela ainda não for a capaz de fazer uma
ligação entre os dois eventos: a conexão com uma natureza exterior a ela e o
fato de que de repente o peso que antes se apoderava do seu corpo ia se
tornando mais leve. Então era isso, ela pensou: ia largar tudo, ia trocar de
país, ia começar tudo de novo, ia viver uma vida nova. Sem pressões, sem
cobranças, sem meios amores, sem nada que não a fizesse de verdade feliz.
Enquanto ela pensava isso a chuva finalmente caiu. Para se proteger, entrou
debaixo de um armazém. A água era bebida pelo asfalto quente e o cheiro de
molhado subiu do chão para o ar. Tudo lembrava uma brincadeira, como a da
infância, como dos tempos de menina, de pés no descalços, com as crianças em
roda dela e a mãe na cozinha, fritando bife e refogando o arroz. Depois de
brincar muito ia todo mundo pra dentro de casa, fazer fila pro banho, e muito
limpinhos todo mundo ia jantar. As tias gordas na cozinha serviam os pratos
brancos com arroz, muito feijão, bife e batata frita. “Come Eulália, come
bastante que depois da missa a gente vai pro Parque, vamos todos brincar…”
Ela acordou de súbito daquele
devaneio, com a certeza de que queria sim, viver, mesmo com tudo, mesmo apesar
dos pesares, que iria começar de novo, seja onde fosse, seja como fosse, mas
dessa vez com ela mesma como testemunha última de todos os seus atos e
ações.
Chegou
em casa desembrulhou a planta e colocou em cima da mesa da cozinha, perto da
janela onde podia receber sol. A existência de um outro ser vivo que não fosse
ela mesma a fez muito feliz. Pensou em trazer a planta para o seu quarto para
poder ficar mais em sua companhia, mas
decidiu que não . Deixaria na cozinha mesmo, porque era bom toda vez ir ver
como estava, se os botões já começavam a abrir ou se começava a aperecer alguma
flor. A existência daquele objeto atravessando com ela o tempo e o espaço a
tranqulizou. Todas as manhãs Eulália aguava a raiz das flores, que ela nem
mesmo sabia de que espécia que eram. Havia lido o nome na etiqueta que veio com
o vegetal mas depois disso a jogou fora. Decidiu que amaria aquele ser mesmo
sem saber nada sobre ele, decidiu exercitar o seu amor incodndicional que ela
não podia até então exercitar sobre ela mesma. Decidiu esperar, cheia de
paciência e carinho que os botões se abrissem, uma a um no tempo deles. Decidiu
até não esperar para que a flor se transformasse dia após dia para ela, mas que
qualquer transformação seria aceita de muito bom grado e tudo seria para ela
motivo de uma felicidade espontânea, de um gozo natural. Voltava agora para o
quarto, limpou tudo, arrumou a cama, tirou o pó da escrivaninha, varreu várias
vezes, colocou tudo no lugar. Eulália fazia isso de vez enquando, quando queria
arrumar a si mesma ela arrumava primeiro a casa, que era um rito de preparação
para mudança interiores mais intensas. Enfim, foi para o banheiro, tirou a
roupa , olhou-se no espelho. Estava um pouco acima do peso, fingiu não se
importar, olhou se novamente e repetiu num silêncio só dela: Eu te amo Eulália,
e então, depois de alguns momentos olhando-se, muito profundamente nos olhos,
ela se virou, apagou a luz e banhou-se no escuro que era para poder sentir esse
carinho que agora brotava de dentro dela, como um primeiro amor acontecendo
pela primeira vez, de dentro para fora. Depois do banho enxugou-se, vestiu-se,
colocou a camisola, os chinelos e foi de novo para a cozinha olhar mais uma vez
para a sua amiga. Era já de noite e toda a vizinhança fazia silêncio para
aquele cena que se passava na cozinha silenciosa. A mulher e as folhas verdes
se conversavam num carinho mútuo, uma olhando para a outra com as duas
mergulhadas em si mesma, grávidas uma da outra, cheias de presença de uma coisa
qualquer a que chamamos vida. Eulália não florescia ainda porque não era tempo,
mas o tempo viria, em que ela mesma desabrocharia em flor para uma existência
tão abundante que ela mesma desconhecia, mas seria por demais contar a ela
sobre tais coisas nesse instante. Pelo menos por enquanto, enquanto era capaz
de se voltar em pura atenção e carinho paa uma natureza que não fosse a dela
mesma, Eulália estaria segura, pelo menos por enquanto.
YVS
14/07/2016