Querida,
Gosto de começar minhas cartas para
você assim, do mesmo modo como Clarice escrevia para as suas amigas. E também
porque eu começo a sentir um tom profético no sentido da minha existência. Você
é uma das minhas profetizas, foram minhas profetizas algumas professoras da
escola primária, raramente alguns amigos, e vez ou outra, até eu mesmo. É
porque eu preciso (ou quero) acreditar que existe um sentido muito profundo
nessa coisa de ser. É porque eu tenho medo de acabar. É porque eu ousei me
perguntar demais sobre quem sou eu, e a consequência disso é esperar uma carta
(de Deus?) que não chegou até hoje. Eu sofro enquanto eu não recebo a carta. É
porque eu queria qualquer resposta, mesmo uma mentira, mas na qual eu
acreditasse , mas isso já existe, e se chama religião. É porque também sou
muito vaidoso, quero que depois de minha morte os intelectuais leiam sobre as
correspondências trocadas entre mim e
uma certa Maria “com mais de 10.000 anos de idade”. Eu, numa falta de sentido,
criei o mito em torno de mim. Que como Fernando Pessoa, em correspondência com
Mário de Sá Carneiro muito bem definiu : “ O mito é o tudo que é nada”. É
talvez por isso, porque eu sou um Nada querendo ser Tudo. É porque por puro
orgulho e despeito eu quero que depois que eu partir eu seja lembrado nas
correspondências , nos diários, pequenos pedaços de papel. Esse amor e respeito
que eu não obtive em vida, que eu tenha pois, depois da minha morte. Tentei
retirar por hora o tom melancólico e pessimista da minha narrativa, mas lendo
de novo a carta que você me escreveu , você sendo tão verdadeira, como eu
poderia ser tão falso, fingindo uma felicidade que não existe? Apresento o que
eu sou, tento me explicar.
Tudo é branco, só existe um chão
branco, um ar branco, um céu-parede-céu-de-novo, abaulado, branco. Pombas
brancas sem rosto voam. Branco gelo, branco gesso de parede, branco marfim. Eu
estou deitado nesse chão. Sinto um aperto no peito. Olho ao redor e nessa
superfície em que nada se define eu vejo a pata de um enorme elefante me pisando.
O elefante é cinza. Eu não tenho cor. Sei que eu existo porque sinto a dor
causada pela compressão da pata gorda e indelicada do elefante. Tento respirar,
mas eu sinto uma pressão contra o ato dos meus pulmões se encherem e se
esvaziarem. Tento me levantar, mas o
elefante não deixa. O elefante é pesado . O elefante é cinza. Ele foi desenhado
usando giz de cera. Ele foi desenhado ha muito tempo, seus contornos são de um
desenho de criança. Mas porque ele é tão pesado? Ele é inocente e rude ao mesmo
tempo. Ele suja tudo por onde passa. Eu tento levantar a cabeça, seguro a pata
com as duas mãos, faço força, fico cansado, mas eu não consigo. Depois de duas, três,
cinco mil tentativas fracassadas, eu desisto. Deito de volta a cabeça no chão ,
só sinto a pressão no meio do peito. Eu, por pura inocência, perdoo o elefante.
Ele não sabe o que está fazendo. Ele não sabe que me machuca porque também
talvez não saiba que existe. Ele quer se entender mas não consegue. Eu sinto
compaixão por ele. Eu e o elefante somos uma coisa só, talvez sejamos a mesma
coisa. Mas eu não tenho cor, e ele é cinza? E eu só sei que eu existo porque
sinto a dor da opressão causada pela pata pesada. É inútil tentar me levantar. Sinto-me
preso, e pequeno, humilhado. Do fundo da minha frustração, meus olhos se enchem
com duas poças d’água. Uma se derrama, a outra também. Eu choro, eu faço
silêncio. Eu olho meu sofrimento líquido escorrendo, e indo embora. (Pro outro lado do
planeta branco?). Eu vejo um fino rio como um filete tortuoso escorrendo de
mim. O filete de água salgada é transparente. Não é branco como todo o resto.
Eu olho o filete, e penso somente na sua transparência. É isso, eu penso “Eu
desenhei o elefante !”. Se eu desenhei
eu posso apagá-lo. Eu começo, com a mão que me sobra livre, a apagar o
elefante. A borracha branca em atrito com o papel faz me doer. O papel é a
minha pele. Eu desenhei o elefante e usei para isso o tecido-papel-Eu. Eu sinto
dor, mas continuo apagando. Enquanto a borracha vai se esfarelando contra o papel-mim
dois tons de misturam: o cinza e o vermelho. Enquanto eu apago um pouco de
sangue se derrama. A borracha é feita de alguma espécie de asfalto quente. E a
minha pele é tão sensível porque ela nem mesmo sabe que existe. Mas eu continuo
apagando, e quanto mais eu apago mais cores aparecem, e o papel desaparece. Vem
o verde, o amarelo, o marrom, o lilás, vem luzes de carros, barulho das ruas,
janelas se abrindo, o cochichar das pessoas nas multidões, o cheiro do café
posto na mesa, a cor do café, vem as pessoas, vem tudo, tudo vem como num trem
que trouxe num prato a realidade toda, com todas as suas cores-não-cores porque
tudo isso é no mundo e não mais dentro de mim. Eu abro então os olhos, sinto
dor ainda. Estou de volta no mundo, eu não vejo mais o elefante, estou de pé,
mas a pata grande lateja em cima disso que os místicos (e tolos) chamam de
alma. Pelo menos agora eu sei de onde
veio o elefante.
Não, isso não foi um sonho, isso foi
uma tentativa de me explicar. Eu queria não ter sentido. Eu queria ter a grande
ousadia de parar de buscar um sentido para mim. Eu queria perguntar menos e
viver mais. Mas eu , que sem ao menos ter me percorrido todo, já sou tão
inexorável a mim, queria saber-me mais forte do que eu?
Existe uma floresta. Você conhece
essa floresta, eu sei que você conhece. Ela é escura, e profunda, e ninguém
sabe o que tem lá dentro. As pessoas vão em grupos, ela precisa ser
atravessada. As árvores escuras são carnívoras, elas tem vida, e se mechem, e
tem dentes, e cipós se derramando como chicotes. As árvores gigantes guardam o
segredo da floresta. Elas sabem a verdade. Elas, e só elas sabem porque a
floresta existe. Na maior parte do tempo as árvores carnívoras ficam dormindo.
Eu vejo um grupo de pessoas passarem. Elas vão bem quietinhas para não
acordarem as árvores. As pessoas que eu vejo passar não se perguntam nada. Elas
vão apenas andando um passo de cada vez, cochichando uma coisa aqui e ali, elas
sabem que as árvores não gostam de perguntas, e por isso elas não perguntam nada.
O grupo de pessoas só quer atravessar. Eles chegam do outro lado. Eu não vejo
bem o que tem do outro lado, mas eu resolvo, eu mesmo, entrar na floresta. E mesmo sem dizer nada, a minha entrada
acorda as árvores. Além de carnívoras e malvadas elas leem meus pensamentos.
Elas sabem que eu quero roubar-lhes a verdade da existência da floresta. Eu
quero saber mais do que me foi permitido. Elas sabem que eu não vim só para
passar pela floresta, eu sou o ladrão do segredo das árvores, elas se
enfurecem, elas acordam, elas me devoram, e eu morro.
Pronto, pronto, já passou, agora
estou melhor. Eu precisava contar essas duas histórias, elas estavam nascendo
em mim, estavam existindo junto comigo e não cabiam mais em mim, como uma mãe
grávida de gêmeos, mas os gêmeos não são crianças humanas, são dois filhotes de
baleia azul. Eu explodiria se os carregasse por mais uma semana de gestação. Eu
abortei os gêmeos, e com eles eu te dei de presente essas minhas duas
histórias. Eu não sei o que elas significam. Talvez você me diga, talvez você
profetize mais coisas sobre mim enquanto houver tempo. Talvez você profetize o
meu fim, sem ter conquistado nada daquilo que eu o quis. Mas eu nunca quis
nada, eu não me lembro de ter pedido nada. Aonde estão indo todos afinal ? Esse
mundo é muito maluco. Não, só por hoje eu não quero fazer sentido. Eu quero
terminar assim,
Yuri
Canadá,
29 de Março de 2014