quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A mulher no espelho

                            

                          Mas isso era porque agora enfim descansara um pouco de si mesma. Era porque depois de chegada em casa, debaixo do chuveiro a água lavava os pudores de sua alma e de seu sexo. Porque cada gesto diminuto se fazia enquanto ela não estava ali, enquanto não pensava estar existindo. Com o sabonete a fazer curvas pela superfície dos corpo e as mãos a dirigir as espumas que se formavam. Enxaguou-se, sentiu mais uma vez o calor bom da água antes de despedir-se mais uma vez de mais um dos seus muitos, diários, prazeres fugidios. Depois enrolou-se na toalha e ficou de frente para o espelho. A mulher e o espelho. Não dizia nada, não sabia se estava triste ou apenas existindo. Ficou pensativa até não mais pensar . “Olha que menina mais linda, mamãe”. Nínive lembrou-se do gesto da garotinha na saída da aula de dança. Depois de ouvir o que a criança falava, apontando-lhe o dedo, ela virou-se para trás, procurando a menina linda. Era ela mesma. Só percebeu um segundo depois, quando fora então denunciada à sua própria beleza. Depois do incidente olhava-se mais uma vez ao espelho.  De leve deixava a toalha entreaberta de modo que pudesse ver o seu corpo. Sempre teve um pouco de vergonha do seu corpo, do tamanho dos seios, da direção em que lhe apontava o reflexo dos mamilos no espelho. Era insegura, sabia disso, por isso nunca se permitira uma dose maior desse narcisismo gratuito. Estava esfriando e tudo que sentira eram os cabelos molhados escorrendo-se pelas costas frias com alguns fios espalhados em cachos pelos lados dos seios. Sentiu-se vítima do seu pudor, que era como ficava antes e depois da menstruação. Sentiu vontade da boca dos homens, do sexo dos homens. Sabia agora, muito nitidamente da sua solidão, sabia e de verdade entendia o estado natural do seu ser. Não porque não tinha um namorado, nem porque nunca teria, agora ela já sabia, mesmo que tivesse entendeu enfim em si o paradoxo de si mesma. Olhou-se mais uma vez e porque agora já ousava se entender um pouco mais, sorriu. Pensou em todos os homens, grandes homens, homens interessantes, charmosos, bonitos, inteligentes e cheios de histórias deles e do mundo que ela teria entre as pernas, na sua cama, entre os seus lençóis. Porque isso sim que para ela era muito mais interessante. Nínive aprendeu a ser muito honesta consigo mesma, aprendeu a pedir do amor apenas o amor que sabia poder dar. Ela sabia muito consciêncientemente, de uma consciência quase que maliciosa, da limitação verdadeira de sua capacidade de amar. A alegria vinha da aceitação muito mansa de que para tudo nós temos um tempo de aprendizagem. Nínive ainda não tivera o tempo, ou talvez a dor necessária, para aprender o amor. Alguns anos são necessários para as palavras, mais outros para a complexidade da gramática, mais alguns para o entendimento das leis naturais e do portar-se no mundo. Para o amor não, para o amor ela suspeitou que precisaria de muitas vidas para aprender. Com o amor que sabia, e que para ela era suficiente, ela se deleitava. Porque era do tamanho que era, não era maior nem menor, não era falso, dilatado, orgulhoso, era apenas pequeno e sincero, um amor honesto de simplicidade. Era o amor de desejar os homens porque eles despertam nela os prazeres do sexo, não simplesmente porque eles são pessoas a quem se ama por serem pessoas que amamos. Ela sabia sim amar as pessoas, mas de um amor gratuito, sem pedir nada em troca. Sabia amar como quem ama por um respeito muito grande de entender a dor do outro do mundo. Pensava que todos poderiam ser ela, que qualquer um a quem falasse ou com quem encontrasse na rua poderia, como ela, saber-se frágil por dentro. Eram pois, para ela, todos Nínives , andando de um lado e para o outro, à primeira impressão que se julgue, eram todos como ela, e por isso tinham medo, epor isso ela os respeitava. Esse era o amor social, o amor que sabia.  O que se chama de amor entre o homem e a mulher exige-se, entretanto, uma troca, um interesse. Pelo toque da pele, pelo frêmito de beijos e volumes inesperados por entre as pernas, pelas mãos grandes e bem masculinas, pelas veias saltando nos braços fortes, pelos ombros largos, pelo peitoral desenhado em puro músculo,  pelos olhos negros que a desejavam, era pela barba cerrada que roçava-lhe o pescoço, o abdômen e também a parte interna das coxas. Era por um amor raso, mas bom. Não era transcendental, era um amor da terra, nascido das carnes dos homens e das mulheres e que com essas mesmas carnes há um dia de sucumbir baixo-terra. Estava feliz com isso, porque não servia para mulher, nem mãe, isso já sabia. Era, muito honestamente, sozinha no mundo. Muito já se esforçava em ficar bem na companhia dela, e só isso, de suportar-se as angústias e dores, a brevidade de algumas alegrias, e um ocasional um ou outro mal estar associado ao fato de estar viva. Ela era ela demais, sabia-se demasiado como pessoa para suportar uma existência dupla: a dela e a de um suposto marido. Era porque era mulher demais, porque não era submissa, porque era muito inteligente e dona de si. Porque dessa inteligência ela acreditava em um Deus humano morto, bem e muito bem morto por ela mesma com o punhal da sua concepção de mundo.  E que da morte desse Deus era que ela tirava a vontade diária das suas mudanças interiores. Era porque de pensar nisso tudo ela ousou um puco mais, porque a morte de Deus a excitava e os mamilos empuravam para fora do corpo a toalha, e ela ficava nua em pelo, dona da sua própria liberdade, era porque ela De um atrevimento a que se permitia, de um desafiar-se do medo da vida, foi para a sala, atravessou o hall que levava ao quarto, embebido em penumbra, nas pontas dos pés, com os cabelos molhados pingando e causando o rastro que deixava pela casa. No quarto escuro, tocou de leve no aparelho de som,  enquanto com a outra mão tateava pelas sapatilhas no escuro, achou uma e na falta da outra vestiu-lhe apenas a que possuía mesmo, porque ela era assim, a bailarina manca, a bailarina covarde, a bailarina de apenas um pé na ponta e outro no chão. Vestiu primeiro o bico, sem nenhum algodão a amortecer o peso do corpo no dedão machucado, vestiu depois o calço do calcanhar, e então estendeu as fitas rosas de laço por trás e pela frente das panturrilhas dando voltas e mais voltas até sentir-se presa ao sapato de ponta.  Aumentara o som, agora as ondas nadavam pelo ar da casa como as penas de um cisne negro emplumando os vazios de ar que ora ou outra ela ocupava com seu corpo despido, molhado e dançante. Era a bailarina nua e manca, era ela mesma, num grito de honestidade incontestável, porque agora estava sendo Nínive. O espelho refletia muito mais seus movimentos internos, como cavalos no cio copulando dentro dela e gritando para sair-lhe pela garganta, e como não pudesse mais sentir tudo aquilo serviu-se de uísque, puro, em grandes goles, enquanto dançava, enquanto tentava apenas esquecer. Enquanto com alguma violência, e outrora com alguma ternura afastava os móveis da casa para que o espaço fosse mais dela e menos das coisas que ela tinha conseguido vendendo-se a um trabalho que não amava mas que lhe era conveniente. No rosto a expressão acusava o tempo que havia passado e na sua situação cômica de desespero podia-se ver claramente o seu medo. Tudo que fizera fora por medo. Por medo não se tornara bailarina nem professora de dança, por medo não se casara, por medo não tinha tido filhos. Por puro medo era funcionaria pública, porque era muito inteligente então passara em um concurso onde ganharia bem a troco da morte de todos os seus sonhos, mas enquanto ela pensou tudo isso o copo de uísque já estava de novo pela metade e ela enchera o mais uma vez, e isso o fizera, continuamente, até esquecer-se um pouco mais dela mesma. Até sem vergonha nenhuma, dançar nua na ponta de um pé só, com a casa toda, o apartamento iluminado dançando, rodopiando e indo junto com ela. Era porque enquanto estava levemente embriagada não podia sentir a dor dos demônios do meio dia que lhe rasgavam o peito, esquecia-se dos suores , dos espasmos, da garganta fechada, das convulsões exageradas e verdadeiras de um corpo gritando que não estava de acordo com o aprisionamento de sua alma, porque ela não era nada senão uma alma aprisionada querendo ser um corpo querendo ser não algo mais que ela mesma, não um devaneio, nem uma loucura, mas apenas ela mesma quem quer que seja que fosse ela... Depois da morte de Deus pensara em tais possibilidades, depois do fim do pecado entregara-se mais ao sexo, aos prazeres banais, entregara-se mesmo, sem vergonha nenhuma, pois tinha nascido com esse defeito de caráter e nada poderia fazer para consertá-lo,. Amar-se assim era o melhor que fazia, amar-se como bailarina manca, como mulher imperfeita, solitária, errada, ou certa? Ela não sabia.