terça-feira, 12 de abril de 2016

Os machos


           
            Sim , porque eles existem –pensei. Porque percebi a existência deles muito antes do que pudesse perceber a minha própria. O que diferencia um homem de um macho? Quais são as fortalezas e fraquezas desses reprodutores que chamamos de nossos machos ? Porque a palavra macho em si quer dizer muitas outras coisas.  Ela é uma pedra bruta, que precisa ser entalhada, como eu farei neste texto, para que vocês possam entender o que eu quero dizer por “um macho”. Diferentemente do que vocês, mulheres, e também alguns homens, possam pensar, um macho não sabe que é um macho. Ele tem muito pouca consciência de si mesmo. Aqueles que atribuem dominação e violência ao fato de serem machos não sabem o que é ser um macho. Estes últimos são qualquer outra coisa, são brutos, covardes, cafajestes. Mas não são um macho. Pergunto-me eu: o que é isso que o macho tem e que a gente quer? Porque é que não sai da nossa boca como palavra, isso que a gente busca? Porque é que só sai do corpo, antes do gozo, e não com o gozo em si ?  O gozo em si é o fechar da torneira após um macho ter passado por nós. O que eles fazem antes do apogeu da ejaculação é o que faz com que nós saibamos, com certeza, que um macho passou por nós.  Atente então para os detalhes, para as dicas, quase secretas, que eu lhes dou agora para identificar um macho. Assim como o nome já diz, eles tem muito dos animais, mas não de selvageria. Eles se comportam procurando pelas fêmeas. A cabeça se meche bem rápido, o movimento é natural como o dos grandes carnívoros adaptados a caçar nas savanas quentes. E o olhar não é como o olhar dos cavalheiros e homens, onde os olhos é que se movimentam muito, acompanhando o fluxo dos pensamentos. Nos machos o fluxo corporal é que é manifestado pelo movimento da cabeça. O corpo, os músculos, a pele quente, eles todos é que pensam primeiro e então o corpo acompanha. E os olhos geralmente são duas bolinhas pretas maciças, indecifráveis, porque não há nada para ser decifrado mesmo. São desenhadas assim porque a natureza assim as fez para atrair as fêmeas. E os lábios - diferentemente dos cavalheiros, que abrem a boca apenas na necessidade de falar algo que lhes convêm- os lábios estão e estarão sempre entreabertos. O lábio inferior está sempre amostra, refletindo a luz do ambiente. A gente olha praqueles lábios entreabertos e a nossas mãos mentalmente vão nas faces cavalares, na barba cerrada, e o nosso corpo mentalmente também se gruda ao corpo deles. Mas isso não é dado em qualquer lugar. Este encontro sensual que nos expõe à existência de um macho  é um momento muito raro. Geralmente se dá dentro de um restaurante, num casamento, numa festa de formatura ou em qualquer outra ocasião especial onde eles estejam usando uma camisa polo bem justa. É fácil observar que os bíceps são bem demarcados pelas extremidades da camisa. Nota-se também facilmente que o peitoral é largo e as costas seguem o desenho do peitoral. O macho sentará na mesa a sua frente  olhará a fêmea durante o evento. Ele não se entende, não é um cavalheiro, como eu disse, é mais do que isso, é um macho. O macho tem por si só um objetivo muito claro, a fecundação. Alguns machos com traços mais humanos podem não se identificar totalmente com essa característica e desenvolver alguma afeição pela fêmea. Isso é muito raro, entretanto. Quando tal coisa acontece é muito provável que o macho esteja na transição para homem e a fêmea para mulher.  Mas assuntos transcendentais aqui não se aplicam uma vez que queremos falar da natureza primeira dos machos.
            Assim que tiverem a oportunidade os machos conversarão com as fêmeas- conversas breves e superficiais – porém necessárias para comunicar à fêmea o desejo da fecundação. Ela aceitará, e então começará a expectativa de como ocorrerá o ato em si e a transferência de prazer. O lábio do macho tem um gosto bom, melhor do que o dos outros, porque dentro do gosto do lábio estão contidos a largura das costas, a textura da pele morena, os bíceps grandes, o cheiro de macho no cio. O beijo de um macho contém muito mais informação do que um beijo em si. Ele fechará os olhos e a fêmea abrirá levemente as pernas. A musculatura pélvica da fêmea naturalmente se relaxará. A fêmea se sente segura porque, se desejar , suas crias serão protegidas pelo macho que ali se instala para a fecundação. Mas estas coisas já são muito esquecidas, e não importam muito. O que importa, o que tranquiliza a fêmea de verdade é a largura dos músculos. Ela eventualmente irá desabotoar lhe a calça jeans, e deixa-lo de cueca. Os machos sempre usam uma cueca box branca ou vermelha. E tem pelos masculinos nas pernas, próximos às virilhas. A fêmea pode ceder na primeira vez ou procrastinar o ato da fecundação. Se fizer isso porém terá que dividir o esperma dele com outras fêmeas mais determinadas a concretizar o ato. Uma vez terminada a transferência de material genético ou apenas depois que o orgasmo for atingido o macho se deitará e dormirá, como um leão após a refeição.  A fêmea também se recolherá e descansará um pouco. Após uma higiene pessoal ela se recomporá e poderá no outro dia informar as outras fêmeas sobre a cascata de prazer momentâneo coletada durante o orgasmo. As outras fêmeas se sentirão então incomodadas e com um sentimento de estarem diminuídas. Passará então um tempo e elas farão uma investida no macho com o qual esta fêmea estava a copular. A este capítulo denominamos de ciclo promíscuo de superioridade das fêmeas, mas não entraremos nesta discussão dentro deste tópico. Tal ciclo também se aplica aos machos, que farão uma busca iterativa de fêmeas buscando aquela que lhe forneça mais estabilidade  e que lhe permita estar ao mesmo tempo usufruindo da estrutura do lar e do coito com outras fêmeas.

Caso voltem a se encontrar o macho e a fêmea eventualmente deixarão descendentes férteis e esta será possivelmente a causa maior da a aparente estabilidade de uma relação monogâmica não favorável mas possível. Com o tempo os machos envelhecem e perdem o vigor do seu sexo. Há aqui uma distorção curiosa. Apesar de o pênis ser o órgão reprodutor é a distorção e degeneração dos músculos do abdômen que faz com que as fêmeas se sintam menos atraídas por eles. Com o tempo também os músculos do peitoral se deteriorarão, e com eles os bíceps, as costas e o peitoral.  Deteriorar-se-á a estrutura geral que na juventude fez com que machos fossem machos. Com o tempo as funções metabólicas todas cessarão culminando com a morte do corpo. Após este dia eles nunca mais serão lembrados.

sábado, 2 de abril de 2016

Os Macacos



Certa vez eu passeava pelo jardim zoológico de Munique quando me deparei com um grupo de macacos. Eram babuínos, tinham o peito azul e as nádegas peladas e vermelhas, na cor de sangue vivo. Alguns eram bem sérios e ficavam sentados, olhando o horizonte com uma certeza impressionável. Uma certeza, de quê ? - pergunto eu. Penso que seja uma certeza do que é ser um babuíno, uma certeza plena da sua existência e função como macaco. Entre si eles mostravam ser muito sociáveis, e quando cheguei mais perto do alambrado para olhar, percebi que se tratava de um grupo grande. Haviam 30, 40 deles, todos numa ilha, cercados, e separados de mim apenas por uma vala de água. Eu olhava obtusamente para um deles. Algo em mim começava a me dizer que havia um segredo oculto na existência daqueles símios. De repente ouvi um barulho e a minha atenção foi dispersada. Ouvi gritos, não de gente, mas de macacos, e então toda a multidão se escoou para dentro das jaulas para ver o que estava acontecendo. Havia um portão, suspenso pelo seu próprio peso, atarracado na parte de cima por dobradiças de metal de modo a abrir e fechar a medida que se pegasse no puxador e se fizesse alguma força para fora. O modo como os babuínos abriam a pequena passagem me impressionou. Porque esse ato era de certa forma tão humano como o modo como eu abriria aquela porta se precisasse. Os macacos obviamente não falam e havia pouco barulho, mas eu percebi que se comunicavam por uma série de sinais corporais. Andavam em grupos, tinham amigos e inimigos, eram sociais. De repente um grupo grande de turistas chineses chegou de súbito , perto do alambrado de proteção, e ficou ali olhando os babuínos. Eles, por sua vez, olhavam de volta. Eu fiquei por muito tempo me perguntando quem estava olhando quem. Aquela sensação me incomodou. Eu, logo a mim, que me julgava tão especial, dotado de sentimentos complexos e profundos, me via agora descendente provável de um daqueles primatas. Eu olhava-lhes a face, eu estudava lhes a expressão, e não era difícil conectar os fatos entre as duas pontas da cadeia evolutiva. Porque eles sentiam como eu, eram curiosos como eu, eram muitas coisas que eu era, apenas em um ramo diferente da árvore filogenética. De repente fui tomado de um pânico como poucas vezes um pânico me tomou antes. A minha humanidade desaparecia enquanto os macacos me olhavam. O meu sentimento de orgulho por ter nascido especial e único se esvaía a medida que eu os observava falando uns com os outros por um levantar de sobrancelhas, por um esboçado sorriso, por um gesto qualquer que fosse. Esse orgulho forjado que eu tinha por ser humano e me considerar superior, esse orgulho foi me consumindo de vergonha. Quem era eu, afinal de contas, além de um macaco maior, mais inteligente, pertencente a uma classe que se sobressaiu no processo de seleção natural, mas que nem por isso, deixava de ser menos bicho ? Aquela náusea me percorria agora, um pouco pela repulsa de uma verdade exposta, um pouco pelo meu medo da minha condição frágil e humana. Fiquei sem falar, fiquei sem pensar. Dei um passo a frente, debrucei-me sobre a grade do alambrado e fiquei olhando meu irmão símio, profundamente, nos olhos.
Muito concentrado, um pouco por temor, um pouco por devoção à força furiosa da mãe Vida, eu olhava friamente um deles em particular. Sutilmente tentei vasculhar por um ponto pelo qual eu pudesse depreciá-lo, sendo esta minha maneira de me defender à afronta direta que é a existência pura e selvagem de um macaco. E então, foi porque dele se acercou um indivíduo mais velho, com aparência de doente, que eu logo percebi qual seria minha saída, qual seria a minha vingança. Os macacos nascem e morrem macacos, mas os homens, apesar de nascerem e morrerem dentro do corpo de um bicho, não começam como homens e nem terminam como homens. Isto, de ser homem, é uma coisa que o macaco não pode ser. É um acontecer-se prolongado que vai existindo entre o nosso nascimento e a nossa morte. Só eu posso ter a angústia de querer entender a mim mesmo, coisa que um macaco nunca fará. Então, pensei eu, será apenas isso? Será apenas a angústia que me define e me separa dessa condição atroz de uma natureza dentro de mim? Não, não pode ser. Não é a angústia apenas, mas a beleza também, eu conclui. É porque eu acho belas as coisas, é porque eu me emociono com as pequenas coincidências, é porque eu busco os sinais escondidos em segredos mínimos. É porque só sendo ser humano eu sou capaz de saber da minha própria morte, e fazer acontecer uma vida antes disso. Era isso talvez, a resposta que eu procurava e que me tranquilizou por aqueles instantes. Entretanto, enquanto houverem macacos no mundo eu serei subjugado por esse incômodo, esse lugar-fora-de-todos-os-lugares que me impulsiona a me definir, me entender, me transformar e sobretudo transcender a minha natureza animal buscando um sentido para o que é ser homem. Enquanto os macacos existirem esse alerta permanente existirá dentro de mim, enquanto eu estiver dentro do corpo de um bicho eu cuidarei, de toda a minha atenção, para que eu não seja apenas, um bicho também.