- Mas e você
Hortênsia ?
- Mas eu o que ?
- Você gosta de
você ?
Ela fez uma pausa,
os olhinhos miúdos foram parar no chão e depois na parede, onde havia um
relógio, que não parou mesmo com os olhos dela congelados no ponteiro se
movendo.
- Não doutor, eu
não gosto. É impossível.
- Mas porque
Hortênsia, porque que é impossível?
Ela fez um ar de
quem se permite uma dignidade, estufou o peito, olhou-o contrariada e ao mesmo
tempo esnobe, depois de estudar o psicólogo por algum tempo, disse calmamente:
- O senhor sabe
sim, o senhor sabe muito bem. Faz de
conta que não mas eu sei que sabe. – após uma pausa retórica, e triste, ela
retomou: Como, me diz como, que eu posso me amar, sabendo que, enquanto eu
estou aqui, refém de mim mesma numa vida que eu não quero existe alguém que
neste momento está de viagem marcada, dentro de uma van, com seus melhores
amigos, pra atravessar a Austrália de uma ponta a outra, ou “coast to coast”
como eles dizem. – os olhos marejaram, mas não ousaram derramar-se.
- Hortênsia, eu
não entendi o que é que tem a Austrália a ver com tudo isso.
- Não é só a
Austrália não seu doutor, também tem os Estados Unidos, tem o Sul da França,
tem a Baviera, tem as ilhas gregas. Ah doutor, e se fosse só isso. Está muito
mais espalhado. Como é que eu consigo ser feliz e amar a mim mesma ouvindo na
rua , sempre com festa por perto, essas pessoas que tanto se conversam. E as
despedidas então !? Quanto juntam 30, 40, 50 deles numa pizzaria por causa de
um, porque amam tanto esse um que querem estar com ele antes de ir-se embora, até o ultimo pedacinho de segundo. E
pra onde esse um chegar vão haver mais 30, 40 ou 50 que o amarão por onde ele
for, porque o seu amor próprio não está nos lugares mas nele mesmo. Como é que
eu posso, doutor ? Me diz. Como é que eu
posso gostar de mim sabendo que enquanto
eu durmo sozinha, sentindo dor sem motivo, tem gente amando de puro amor, assim
tão perto de mim. No andar de cima do meu ? Dentro do meu próprio prédio? Nas
casas da minha rua ? A felicidade deles me oprime e me maltrata, porque é só
alegria. Porque ninguém ousa confessar uma tristeza, um dessabor, uma frustação, porque são eles, todos eles,
príncipes na vida. E eu nunca serei. É porque o meu medo maior da vida é tanto,
mas tanto mas tanto que eu nem ouso ser eu mesma com medo de morrer de medo.
Sei que jamais conseguirei me submeter a mim mesma sem morrer da minha pior
morte. É porque eu ainda não aprendi ainda a amar. É porque o que eu aprendi,
ou que me ensinei sobre o amor era de algo que havia de ser perfeito. Aprendi
entretanto que os verdadeiros amores são moldados nas maiores imperfeições. É
porque eu só poderei amar ao que chamo de mundo quando for capaz de amar a mim
mesma sem ter mesmo nenhuma razão para isso. É porque esse amor inocente tem
ferido o meu orgulho e é só pelo orgulho de ter nascido que eu me sinto de amor
maior, não dos homens , mas de quem sabe !? É porque nós não vivemos nenhuma
grande guerra ou nenhuma grande depressão, e por isso a nossa maior batalha é
espiritual. Antes eu pensava que eu mesma era assim, de um pessimismo crônico.
Só a pouco percebi que o estado natural da humanidade é a tristeza.
Incomoda-lhes ser feliz. E por isso se causa tanta comoção as guerras e as desgraças.
Não sou eu apenas, é o mundo falando por mim.
- Então é isso ,
não tem solução, Hortênsia !?
- Eu não vejo, não
agora. Eu não estou me suportando sabe, é ruim estar dentro de mim, porque eu
não me amo como eu sou. Eu não faço o que eu gosto, eu não tenho os amigos que
quero, eu não me realizo em nada. Eu entrei pelo lado errado da vida e por
enquanto não consigo ver outra saída. Acho que eu me acostumei por tanto tempo
a me fazer de vítima que eu não saberia como é a outra coisa. Eu acho que eu
não saberia como é ser feliz, doutor. Como é estar dentro de mim mesma e
gostando disso. Eu não consigo imaginar como seria. Ter uma vida minha, que eu
amasse muito e que tivesse tudo a ver comigo. Porque eu ainda continuo buscando
por essa perfeição que não existe, mas que só faz maltratar a gente. Eu queria
morrer doutor, eu queria morrer por não saber o que é ter uma vida.
Mas veja- ela
parou sem saber muito bem porque parou e ia mudar o tom. Os olhos se encheram
de duas poças imensas profetizando o choro que vinha de dentro mas que por hora
não iria sair - Eu, eu.... eu estou doente de mim mesma doutor. Eu temo, com
horror maior , de todos os medos, de todas as formas, a felicidade que pode
haver em mim. Eu me destruo aos poucos, eu vou acabando comigo mesma, por puro medo
de perder uma eventual felicidade que eu talvez um dia tenha. Ser feliz me dói,
me incomoda, me desespera. Porque a felicidade sempre acaba. Não é como a
tristeza, que é um estado natural nosso. É sempre um esvair-se, um morrer de
saudade, um não suportar, isso, que mal se percebe não está mais existindo. E
se por um acaso se percebe que está existindo já não o está mais. É porque eu
sinto com pesar em mim esse esvair-me, esse vazio que só é permitido a alguém
que um dia já foi cheio. Então é por isso que eu prefiro, e faço por onde, de estar sempre vazia. Pra poder suportar a
felicidade, que me dói tanto, de vez em sempre.