quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Domingo

- Então, se não é por amor, porque é que você faz então, Ofélia ?
- É pela vida, em si, é a vida de mais, atroz, intensa, me corroendo por todos os
lados, me consumindo, me deixando assim, perdida, zonza, desnorteada. Eu quero
entender mais, eu quero entender o que é tudo isso.
- O que é que você quer entender?
- Onde é que está isso, onde que cabe isso , onde é que está o meu controle sobre o
mundo ?
- Sobre o que Ofélia, controle sobre o que ? Sobre as luzes, o parque, as pessoas
andando, sobre o que ?
- Eu não sei. Me desculpe, eu só sei que eu não entendo.
E neste momento eu a abracei e nós continuamos andando assim próximos, com ela
debaixo do meu braço esquerdo. Eu olhava a rua apenas, olhava pra frente e andava.
Mas de vez em quando eu espiava os olhinhos dela, admirando também, mas com
um vislumbre, com uma nitidez de olhos que não estavam ali, mas que estavam
sonhando em outra parte porque a realidade para ela era sonho demais para ser
verdade.
- Eu acho que eu sei, Afonso. Eu acho que sei o que é. Não é por amor, não é por
medo, mas é por vingança.
- Como assim por vingança, vingança contra quem ? – e eu procurei logo um banco e
pedi que nós nos sentássemos pois pressenti que estava vindo.
- Vingança das pessoas, vingança do mundo, vingança de Deus, vingança da miséria a
que eu fui submetida por tanto tempo, vingança da falta de amor, vingança pela falta
de pessoas que realmente se importem. É vingança Afonso, é isso, é vingança, talvez
haja um pouco de ódio também. Mas no mais profundo mesmo é a mais pura,
genuína e sincera vingança.
- E quando foi que alguém em específico fez alguma coisa pra você ? Algum ato ou
ação que de certa forma te prejudicou, que machucou seus sentimentos, que te fez
infeliz ? - ela parou e ficou pensando, na face as duas bolas escuras e frias ficaram
por um tempo perdidas no chão -
- Nunca na verdade. Talvez um ou outro tenham feito coisas menores, mas que eu já
os tenha perdoado também, pela ignorância deles mesmos.
- Então Ofélia, de quem é que você está se vingando ?
- Estou me vingando do fato de que eu sofri, de que eu não tive as coisas que eu
queria, no momento em que eu queria. Me vingo do fato que eu tinha sempre o
mínimo o suficiente para saber que algo de bom existia mas que aquilo não seria
meu. Como uma comida, uma viagem, uma festa, sempre pontos singulares, sempre
nunca se repetindo, sempre um e apenas isso.
- E em como você teria se tornado uma pessoa melhor se você tivesse, desde o início,
tido tudo o que você sempre quis ?
- Eu não seria uma pessoa melhor, necessariamente, não teria uma alma tão forte
como a que tenho hoje, capaz de suportar tanta dor e continuar viva. Mas eu teria
uma simplicidade de espirito e sofreria menos. Eu não sei até que certo ponto a
minha complexidade de alma tem me sido boa ou ruim.
- Quando é que tem sido boa, por exemplo ?
- Eu gosto de saber que eu sei as coisas, eu gosto de olhar pro mundo e ter
explicações. Eu gosto de saber do que é feita a luz, porque a Terra gira e do que a
Terra é feita. Eu gosto de saber sobre a vida das árvores, como elas nascem, como
elas vivem e porque morrem. Eu gosto de olhar pro mundo e ver não o que a maioria
das pessoas vê, mas ver aquilo que só eu posso ver porque eu sei mais. Porque eu
estudei aquelas coisas, porque eu li e aprendi. Eu acho que gosto de saber porque
me sinto especial, porque me sinto diferente, porque é minha maneira de me
proteger do mundo, é a minha maneira de esconder a minha fragilidade perante a
vida, perante o meu medo da morte, perante a minha solidão. Eu acho que é isso
mesmo, é pra me proteger.
- Eu acho que é mais do que isso Ofélia. Pode ser sim, também, por proteção. Mas e
se for apenas um atributo bom em você mesma? E se for alguma coisa intrínseca da
sua natureza, da sua pessoa, alguma coisa não da qual você tenha que se
envergonhar por usar como escudo contra a maldade do mundo mas a qual você
deva se orgulhar por ter nascido com você e fazer parte da sua constituição como
ser humano? Mas isso, isso só mais tarde, quando você tiver olhos pra ver e ouvidos
para ouvir… Por enquanto eu quero continuar te perguntando, quando é então que a
sua complexidade de alma não é boa ?
- Na outra metade do tempo. Quando ela me sufoca, quando ela me exige uma
explicação lógica para tudo, até mesmo para as coisas boas que não precisem de
explicação nenhuma. Estar aqui por exemplo é uma espécie de sofrimento para mim
porque eu quero entender a felicidade das pessoas mas eu não consigo
compreender nada, não consigo juntar as partes. Será pelas luzes do parque, será
pela cerveja, será pelos brinquedos, será porque eles vem aqui para encontros de
casais? Porque tudo isso acontece, e onde é o meu lugar nisso tudo? Eu tenho
aprendido a compartimentalizar tudo em análises minuciosas. Eu tenho aprendido a
dividir o corpo em órgãos, e os órgãos em tecidos e os tecidos em células e as células
em átomos e os átomos em partículas subatômicas e estas partículas nos campos de
força que as originaram. Eu aprendi isso, apenas, mas não aprendi a extrair o
conteúdo completo de uma experiência, por melhor que ela seja.
- Eu entendo, Ofélia, eu entendo. Até mesmo pra mim, que trabalho com pessoas o
dia todo e estou acostumado a observar eventos agindo em contextos, as vezes eu
me vejo incapaz de vivenciar o momento presente sem pedir muito mais do que a
verdade desses instantes. Eu entendo você, mas se nós quisermos uma vida cheia de
sentido e de coisas que importem nós deveremos lutar por isso, Ofélia, lutar por
isso todos os dias, se é isso que realmente importa para nós.
- Lutar pelo que, Afonso? Eu não entendo.
- Lutar por estar no momento presente, por viver uma experiência de vida estando
completamente imersos nela.
- Eu pensava que para isso não se precisava lutar, mas que era uma coisa que é
acontecia ou não acontecia.
- É Ofélia, você está certa, quando o instante passa pela gente ou estamos lá ou não
estamos para vivenciar, é inútil tentar forçar uma experiência genuína. É como um
desejo que começa dentro da gente e que caso se materialize de qualquer forma vai
nos trazer para a mágica de estarmos imersos na vida, sem passado nem futuro, sem
planos, nem ideias, nem projeções, com a vida em si mesma, com o instante em sim
mesmo, e com nós em nós mesmos sendo tudo que nos baste no universo. Nem que
seja ao menos, por alguns instantes...
- É como um salto no escuro, não é mesmo?
- Sim, Ofélia, é como um salto no escuro…”