sábado, 2 de abril de 2016

Os Macacos



Certa vez eu passeava pelo jardim zoológico de Munique quando me deparei com um grupo de macacos. Eram babuínos, tinham o peito azul e as nádegas peladas e vermelhas, na cor de sangue vivo. Alguns eram bem sérios e ficavam sentados, olhando o horizonte com uma certeza impressionável. Uma certeza, de quê ? - pergunto eu. Penso que seja uma certeza do que é ser um babuíno, uma certeza plena da sua existência e função como macaco. Entre si eles mostravam ser muito sociáveis, e quando cheguei mais perto do alambrado para olhar, percebi que se tratava de um grupo grande. Haviam 30, 40 deles, todos numa ilha, cercados, e separados de mim apenas por uma vala de água. Eu olhava obtusamente para um deles. Algo em mim começava a me dizer que havia um segredo oculto na existência daqueles símios. De repente ouvi um barulho e a minha atenção foi dispersada. Ouvi gritos, não de gente, mas de macacos, e então toda a multidão se escoou para dentro das jaulas para ver o que estava acontecendo. Havia um portão, suspenso pelo seu próprio peso, atarracado na parte de cima por dobradiças de metal de modo a abrir e fechar a medida que se pegasse no puxador e se fizesse alguma força para fora. O modo como os babuínos abriam a pequena passagem me impressionou. Porque esse ato era de certa forma tão humano como o modo como eu abriria aquela porta se precisasse. Os macacos obviamente não falam e havia pouco barulho, mas eu percebi que se comunicavam por uma série de sinais corporais. Andavam em grupos, tinham amigos e inimigos, eram sociais. De repente um grupo grande de turistas chineses chegou de súbito , perto do alambrado de proteção, e ficou ali olhando os babuínos. Eles, por sua vez, olhavam de volta. Eu fiquei por muito tempo me perguntando quem estava olhando quem. Aquela sensação me incomodou. Eu, logo a mim, que me julgava tão especial, dotado de sentimentos complexos e profundos, me via agora descendente provável de um daqueles primatas. Eu olhava-lhes a face, eu estudava lhes a expressão, e não era difícil conectar os fatos entre as duas pontas da cadeia evolutiva. Porque eles sentiam como eu, eram curiosos como eu, eram muitas coisas que eu era, apenas em um ramo diferente da árvore filogenética. De repente fui tomado de um pânico como poucas vezes um pânico me tomou antes. A minha humanidade desaparecia enquanto os macacos me olhavam. O meu sentimento de orgulho por ter nascido especial e único se esvaía a medida que eu os observava falando uns com os outros por um levantar de sobrancelhas, por um esboçado sorriso, por um gesto qualquer que fosse. Esse orgulho forjado que eu tinha por ser humano e me considerar superior, esse orgulho foi me consumindo de vergonha. Quem era eu, afinal de contas, além de um macaco maior, mais inteligente, pertencente a uma classe que se sobressaiu no processo de seleção natural, mas que nem por isso, deixava de ser menos bicho ? Aquela náusea me percorria agora, um pouco pela repulsa de uma verdade exposta, um pouco pelo meu medo da minha condição frágil e humana. Fiquei sem falar, fiquei sem pensar. Dei um passo a frente, debrucei-me sobre a grade do alambrado e fiquei olhando meu irmão símio, profundamente, nos olhos.
Muito concentrado, um pouco por temor, um pouco por devoção à força furiosa da mãe Vida, eu olhava friamente um deles em particular. Sutilmente tentei vasculhar por um ponto pelo qual eu pudesse depreciá-lo, sendo esta minha maneira de me defender à afronta direta que é a existência pura e selvagem de um macaco. E então, foi porque dele se acercou um indivíduo mais velho, com aparência de doente, que eu logo percebi qual seria minha saída, qual seria a minha vingança. Os macacos nascem e morrem macacos, mas os homens, apesar de nascerem e morrerem dentro do corpo de um bicho, não começam como homens e nem terminam como homens. Isto, de ser homem, é uma coisa que o macaco não pode ser. É um acontecer-se prolongado que vai existindo entre o nosso nascimento e a nossa morte. Só eu posso ter a angústia de querer entender a mim mesmo, coisa que um macaco nunca fará. Então, pensei eu, será apenas isso? Será apenas a angústia que me define e me separa dessa condição atroz de uma natureza dentro de mim? Não, não pode ser. Não é a angústia apenas, mas a beleza também, eu conclui. É porque eu acho belas as coisas, é porque eu me emociono com as pequenas coincidências, é porque eu busco os sinais escondidos em segredos mínimos. É porque só sendo ser humano eu sou capaz de saber da minha própria morte, e fazer acontecer uma vida antes disso. Era isso talvez, a resposta que eu procurava e que me tranquilizou por aqueles instantes. Entretanto, enquanto houverem macacos no mundo eu serei subjugado por esse incômodo, esse lugar-fora-de-todos-os-lugares que me impulsiona a me definir, me entender, me transformar e sobretudo transcender a minha natureza animal buscando um sentido para o que é ser homem. Enquanto os macacos existirem esse alerta permanente existirá dentro de mim, enquanto eu estiver dentro do corpo de um bicho eu cuidarei, de toda a minha atenção, para que eu não seja apenas, um bicho também.

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