terça-feira, 22 de abril de 2014

“Cartas para Maria” ou “ A explicação do mundo segundo Eu mesmo”






Querida,

            Gosto de começar minhas cartas para você assim, do mesmo modo como Clarice escrevia para as suas amigas. E também porque eu começo a sentir um tom profético no sentido da minha existência. Você é uma das minhas profetizas, foram minhas profetizas algumas professoras da escola primária, raramente alguns amigos, e vez ou outra, até eu mesmo. É porque eu preciso (ou quero) acreditar que existe um sentido muito profundo nessa coisa de ser. É porque eu tenho medo de acabar. É porque eu ousei me perguntar demais sobre quem sou eu, e a consequência disso é esperar uma carta (de Deus?) que não chegou até hoje. Eu sofro enquanto eu não recebo a carta. É porque eu queria qualquer resposta, mesmo uma mentira, mas na qual eu acreditasse , mas isso já existe, e se chama religião. É porque também sou muito vaidoso, quero que depois de minha morte os intelectuais leiam sobre as correspondências trocadas entre mim  e uma certa Maria “com mais de 10.000 anos de idade”. Eu, numa falta de sentido, criei o mito em torno de mim. Que como Fernando Pessoa, em correspondência com Mário de Sá Carneiro muito bem definiu : “ O mito é o tudo que é nada”. É talvez por isso, porque eu sou um Nada querendo ser Tudo. É porque por puro orgulho e despeito eu quero que depois que eu partir eu seja lembrado nas correspondências , nos diários, pequenos pedaços de papel. Esse amor e respeito que eu não obtive em vida, que eu tenha pois, depois da minha morte. Tentei retirar por hora o tom melancólico e pessimista da minha narrativa, mas lendo de novo a carta que você me escreveu , você sendo tão verdadeira, como eu poderia ser tão falso, fingindo uma felicidade que não existe? Apresento o que eu sou, tento me explicar.
            Tudo é branco, só existe um chão branco, um ar branco, um céu-parede-céu-de-novo, abaulado, branco. Pombas brancas sem rosto voam. Branco gelo, branco gesso de parede, branco marfim. Eu estou deitado nesse chão. Sinto um aperto no peito. Olho ao redor e nessa superfície em que nada se define eu vejo a pata de um enorme elefante me pisando. O elefante é cinza. Eu não tenho cor. Sei que eu existo porque sinto a dor causada pela compressão da pata gorda e indelicada do elefante. Tento respirar, mas eu sinto uma pressão contra o ato dos meus pulmões se encherem e se esvaziarem.  Tento me levantar, mas o elefante não deixa. O elefante é pesado . O elefante é cinza. Ele foi desenhado usando giz de cera. Ele foi desenhado ha muito tempo, seus contornos são de um desenho de criança. Mas porque ele é tão pesado? Ele é inocente e rude ao mesmo tempo. Ele suja tudo por onde passa. Eu tento levantar a cabeça, seguro a pata com as duas mãos, faço força, fico cansado,  mas eu não consigo. Depois de duas, três, cinco mil tentativas fracassadas, eu desisto. Deito de volta a cabeça no chão , só sinto a pressão no meio do peito. Eu, por pura inocência, perdoo o elefante. Ele não sabe o que está fazendo. Ele não sabe que me machuca porque também talvez não saiba que existe. Ele quer se entender mas não consegue. Eu sinto compaixão por ele. Eu e o elefante somos uma coisa só, talvez sejamos a mesma coisa. Mas eu não tenho cor, e ele é cinza? E eu só sei que eu existo porque sinto a dor da opressão causada pela pata pesada. É inútil tentar me levantar. Sinto-me preso, e pequeno, humilhado. Do fundo da minha frustração, meus olhos se enchem com duas poças d’água. Uma se derrama, a outra também. Eu choro, eu faço silêncio. Eu olho meu sofrimento líquido  escorrendo, e indo embora. (Pro outro lado do planeta branco?). Eu vejo um fino rio como um filete tortuoso escorrendo de mim. O filete de água salgada é transparente. Não é branco como todo o resto. Eu olho o filete, e penso somente na sua transparência. É isso, eu penso “Eu desenhei o elefante !”.  Se eu desenhei eu posso apagá-lo. Eu começo, com a mão que me sobra livre, a apagar o elefante. A borracha branca em atrito com o papel faz me doer. O papel é a minha pele. Eu desenhei o elefante e usei para isso o tecido-papel-Eu. Eu sinto dor, mas continuo apagando. Enquanto a borracha vai se esfarelando contra o papel-mim dois tons de misturam: o cinza e o vermelho. Enquanto eu apago um pouco de sangue se derrama. A borracha é feita de alguma espécie de asfalto quente. E a minha pele é tão sensível porque ela nem mesmo sabe que existe. Mas eu continuo apagando, e quanto mais eu apago mais cores aparecem, e o papel desaparece. Vem o verde, o amarelo, o marrom, o lilás, vem luzes de carros, barulho das ruas, janelas se abrindo, o cochichar das pessoas nas multidões, o cheiro do café posto na mesa, a cor do café, vem as pessoas, vem tudo, tudo vem como num trem que trouxe num prato a realidade toda, com todas as suas cores-não-cores porque tudo isso é no mundo e não mais dentro de mim. Eu abro então os olhos, sinto dor ainda. Estou de volta no mundo, eu não vejo mais o elefante, estou de pé, mas a pata grande lateja em cima disso que os místicos (e tolos) chamam de alma.  Pelo menos agora eu sei de onde veio o elefante.
            Não, isso não foi um sonho, isso foi uma tentativa de me explicar. Eu queria não ter sentido. Eu queria ter a grande ousadia de parar de buscar um sentido para mim. Eu queria perguntar menos e viver mais. Mas eu , que sem ao menos ter me percorrido todo, já sou tão inexorável a mim, queria saber-me mais forte do que eu?
            Existe uma floresta. Você conhece essa floresta, eu sei que você conhece. Ela é escura, e profunda, e ninguém sabe o que tem lá dentro. As pessoas vão em grupos, ela precisa ser atravessada. As árvores escuras são carnívoras, elas tem vida, e se mechem, e tem dentes, e cipós se derramando como chicotes. As árvores gigantes guardam o segredo da floresta. Elas sabem a verdade. Elas, e só elas sabem porque a floresta existe. Na maior parte do tempo as árvores carnívoras ficam dormindo. Eu vejo um grupo de pessoas passarem. Elas vão bem quietinhas para não acordarem as árvores. As pessoas que eu vejo passar não se perguntam nada. Elas vão apenas andando um passo de cada vez, cochichando uma coisa aqui e ali, elas sabem que as árvores não gostam de perguntas, e por isso elas não perguntam nada. O grupo de pessoas só quer atravessar. Eles chegam do outro lado. Eu não vejo bem o que tem do outro lado, mas eu resolvo, eu mesmo, entrar na floresta.  E mesmo sem dizer nada, a minha entrada acorda as árvores. Além de carnívoras e malvadas elas leem meus pensamentos. Elas sabem que eu quero roubar-lhes a verdade da existência da floresta. Eu quero saber mais do que me foi permitido. Elas sabem que eu não vim só para passar pela floresta, eu sou o ladrão do segredo das árvores, elas se enfurecem, elas acordam, elas me devoram, e eu morro.
            Pronto, pronto, já passou, agora estou melhor. Eu precisava contar essas duas histórias, elas estavam nascendo em mim, estavam existindo junto comigo e não cabiam mais em mim, como uma mãe grávida de gêmeos, mas os gêmeos não são crianças humanas, são dois filhotes de baleia azul. Eu explodiria se os carregasse por mais uma semana de gestação. Eu abortei os gêmeos, e com eles eu te dei de presente essas minhas duas histórias. Eu não sei o que elas significam. Talvez você me diga, talvez você profetize mais coisas sobre mim enquanto houver tempo. Talvez você profetize o meu fim, sem ter conquistado nada daquilo que eu o quis. Mas eu nunca quis nada, eu não me lembro de ter pedido nada. Aonde estão indo todos afinal ? Esse mundo é muito maluco. Não, só por hoje eu não quero fazer sentido. Eu quero terminar assim,



Yuri

Canadá, 29 de Março de 2014

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