quarta-feira, 10 de maio de 2017

A maldição Karnal

“...fazia frio naquele fim de tarde do mês de maio do ano de 2012. O dia no hospital tinha sido pesado. Dentro do carro, no caminho de volta,  eu vim pensando na vida, não só na minha, mas na dos outros também. Era um sentimento estranho que eu nunca tinha percebido ter antes. Uma espécie de premonição do que estava pra acontecer nas próximas horas. Cheguei em casa, joguei a bolsa no sofá, deixei as panelas em fogo baixo esquentando a janta e fui tomar um banho. Um costume que eu tenho é deixar a televisão ligada enquanto vou pro chuveiro.  Não gosto do barulho da casa vazia. Eu fui deixando as minhas preocupações de lado enquanto a água quente me acalmava. Lavei a cabeça, passei condicionador, enxuguei-me e enrolei-me na toalha , como faço sempre. Quando abri a porta que dava pro quarto eu pude perceber ao fundo a voz grossa e imponente de um homem que falava na televisão. Assim só com a toalha enrolada na altura dos seios eu saí para o quarto e comecei a ser atraída pelo ar de autoridade que vinha da entonação viril do homem que falava. Ele usava um terno bege e uma camisa social branca com o primeiro botão aberto. Não era bonito. Não era feio também, mas me atraía. Eu sei apenas que me atraía, diria melhor, me intrigava.  Sentei-me na cama e comecei a sentir-me mais confortável com aquela presença masculina que agora alcançava meus sentidos. E porque eu gostasse do tom do discurso comecei a ouvir prestando mais atenção. Ele falava de Deus.  Mas não falava de um Deus apenas. Não falava do Deus que até então eu conhecia, singular e bom, e também austero quando necessário. Ele não falava do Deus que eu havia aprendido ser Deus. Não falava sobre o Deus que me ensinaram nas primeiras aulas de catequese, no auge dos meus 11 anos, no Colégio Santa Dorotéia. Não falava do Deus compassivo, amoroso e justo, falava entretanto de várias personalidades de um mesmo Deus se alterando em diversos momentos da história. Falava de um Deus que era diferente a medida que os homens era também diferentes. Discorria sobre um criador com uma personalidade quase humana, mudando de ideia e de humor conforme lhe fosse aprazível. Talvez, eu pensei, não fosse uma personalidade quase humana. Mas humana de fato. Talvez, e apenas talvez, aquele Deus sobre o qual o homem discorria fosse apenas uma projeção dos medos, desejos e aspirações não de Deus, mas dos homens mesmo.
“...não de Deus, mas dos homens mesmo...” Quando pensei isto um susto se apoderou de mim. Quem estava sendo eu então, naquele momento? Ou melhor, quem eu havia sido antes, todo este tempo ? Como é que eu nunca tinha sido capaz de traçar sozinha essa linha lógica que correlacionava os dois fatos? Como é que eu não tinha sido capaz de sozinha compreender Deus como a obra prima da criação humana e não o contrário ? E não o contrário, Maria Lúcia, nunca o contrário ! Era um misto de medo e prazer, euforia e indignação. Era de uma curiosidade mansa que o meu espírito todo se desdobrava como as pétalas de uma flor nascendo também se desdobram e se voltam para fora, encarando uma natureza verde, uma  natureza viva, encarando aquilo que parecia finalmente ser o coração selvagem da vida. Era o âmago de uma experiência que só pode ser genuína para o vivente que a saboreia de súbito: crua, palpitando como a artéria exposta onde corre o sangue vermelho, o sangue escarlate. Vivo e vermelho como o coração se apresentando pela primeira vez diante do vazio. Mas, se eu era como esta flor, abrindo-se, eu desabrochava para dentro ou para fora? Qual e onde era esse dentro-fora que os limites do meu espírito buscavam empurrar? Eu fazia força mas não sabia em que direção, e afinal de contas,  que paredes eram estas contra as quais eu fazia força? Eu que me julgava conhecedora de mim e do mundo, eu que me julgava conhecedora de todas as verdades, eu que tinha tido ate então o controle de mim mesma me encontrava desnudada pela crueza fria de uma experiência tão forte. E assim somente é que eu poderia defini-la, era forte e sublime ao mesmo tempo. Leandro tinha entrado dentro de mim. Ou tinha em mim introduzido algo. O que era? Eu não sabia, mas a medida que eu ouvia a sua voz a toalha dos meus seios se desenrolava, fazia desenhos ao despedir-se do meu corpo e ia finalmente deitar-se no chão. O nascimento dos meus seios agora estava a mostra, e na ponta estavam as auréolas,  pouco entumecidas, um pouco envergonhadas. O que se passou depois eu não conseguiria lembrar, mas a presença do homem fez se fecunda corpo da mulher fértil.  Era isto que eu era: fértil. A mulher jovem, viril e estupidamente fértil. Eu era como terra boa esperando pra molhar e germinar as palavras que dele vinham como sementes secas. Eu não sabia naquele momento, mas sei agora que foi somente a minha ignorância que fez com que Karnal em mim fizesse morada. Nunca nenhuma escolha de palavras poderia ser tão apropriada como esta. Ha milênios o espírito santo tem feito morada no corpo imaculado das virgens. Eu havia então postulado que em mim, também, Karnal havia se embebido. O que foi feito estava feito.
Nos dias que se passaram, eu procurei não pensar muito no que havia acontecido na noite anterior.  Busquei esquecer apenas. A experiência tinha sido transformadora de tal forma que eu não pude notar as diferenças acontecendo em mim ao correr dos dias. Mas vieram, como vem todas as coisas que demoram, porque há tempo para tudo debaixo do céu. Eu percebi que não estava mais sendo a mesma. Havia sentindo sintomas.  Estava tonta ? Estava alucinada? Não era bem isso. Mas era como se de repente eu os meus olhos vissem mais, os meus ouvidos se aguçassem e a minha boca falasse em um ritmo mais sábio sobre aquilo que eu via no mundo. Eu era revestida pouco a pouco de uma consciência brutal espalhando-se como doença pelo meu corpo.  As minhas análises tornaram-se mais longas e menos imediatistas e os meus porquês tornaram-se também mais refinados. Era apenas professor este homem ou também um cirurgião sem escrúpulos?  Onde quer que eu fosse ele vinha na frente com o bisturi afiado da sua inteligência ferina dilacerando com golpes precisos o meu misticismo e o meu sentimento de transcendência sobre a vida. Eu me sentia tal como os corpos de Da Vinci sendo abertos , músculo a músculo, tendão a tendão. A diferença é que eu estava viva, vibrando de dor e êxtase enquanto ele em mim trabalhava, dia e noite, sem descanso. O que era isso? O que isso que estava acontecendo? O que era esta força que estava me jogando abruptamente para fora da vida ? Ah, isso também... eu quase havia me esquecido, há ainda a minha vida, as coisas que eu faço quando não estou sofrendo desse vazio que se instalou em mim.
Nas outras horas eu sou médica, infectologista, atendo pacientes com HIV. Todos me contam uma história muito parecida de como se infectaram. Dizem que foi um ato impensado, que se arrependem daquele dia em que não se protegeram como deviam. No consultório , ao falar com os pacientes novos vem imediatamente à minha cabeça as cenas daquela noite de Maio e como tudo poderia ter sido diferente se eu ligasse ou não aquela televisão.  Há uma diferença, entretanto. Meus  pacientes estão bem. Eles vão viver vidas longas e boas, com o tratamento certo. A ciência avançou bastante. Exames só a cada três meses, um comprimido todas as noites, nenhum efeito colateral, expectativas de vida normais. Mas e eu Leandro, quem é que me cura de você? Quem é que me cura dessa angústia, desse vazio, dessa doença que consome o meu corpo como peste, que consome os meus dias, a minha esperança ? Quem espécie de vírus é você, que se alimenta do nosso incômodo?
Ontem nasceu a Maria Eduarda, a mãe dela é soropositiva, mas a menina não... É, a ciência tem avançado bastante... Mas e eu Leandro, eu que nem mesmo sei se quero mais ter filhos porque tenho medo de que após nascer eles peguem de mim também esse incômodo que já se espalhou por mim toda... Sabe, tem um rio que passa aqui na cidade. É bonito, tem muitas árvores e passarinhos. Eu gostava de ir lá, todo domingo, depois da missa, e ficar sentindo o espírito de Deus. Mas hoje , depois de você, quando eu vou lá de novo e fecho os olhos eu só sinto frio e cheiro de mato.... Eu espero de verdade que alguém venha depois, e que venha logo, muito logo, pra me curar de uma vez por todas disso que você plantou em mim... pra me curar de mim mesma, assim mesmo, demais...
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