quinta-feira, 20 de abril de 2017

Cartas para Maria ou A descoberta do Mundo

Munique, 28 de Fevereiro de 2017



Maria, meu bem,

         Eu sempre sonhei com um lugar como esse. Cheio de espaços vazios e em branco onde o nosso espírito pudesse flutuar livremente sem nenhuma pendência, sem nenhum peso. Onde a nossa alma pudesse naturalmente se expandir como se expande uma rajada de ar quente vinda do oceano. Subindo, espairecendo e desintegrando-se em pedaços de nuvens brancas, aeradas e espaçosas no céu largo dos nossos sonhos todos. Por isto eu te peço, minha querida Maria, este espaço, este tempo, esta xícara de café da onde sai fumaça quente, posta em cima de uma mesa muito bem arrumada, numa tarde de Domingo. Tudo é bom, tudo é bom demais e agora eu estou ainda melhor na sua companhia. É assim que eu chego e me achego. Eu vou fazendo uso desses pequenos dedos de prosa, eu vou tangenciando devagar estes assuntos, essas pequenas importâncias, para que com muita calma eu possa me preparar para a presença maior e mais austera das grandes importâncias. Para que eu possa me preparar e fazer em mim morada agradável pra isso, sem nome nem forma, nem cheiro nem som. Pra essa majestade triunfal que não tem presença física mas que ocupa um espaço largo dentro da gente, dentro do coração selvagem da vida. E é por isso Maria, porque eu gosto de deixar o meu espírito confortável é que eu preciso usar com sabedoria esse tempo de adornamento e maturação, porque como você já sabe existe tempo pra tudo que acontece debaixo do céu. Que este possa ser então, o nosso.

         Maria, meu bem, tenho saudade de tudo. Tenho saudade de mim, menino, criança, os olhinhos como duas bolas de gude ingênuas fotografando tudo a volta. No chão os pés descalços, nas mãos um
papagaio de papel e no coração pequenino o universo inteiro. O coração tem seus mistérios, eu antes não sabia, mas agora entendo. O universo, Maria meu bem, o universo é um rascunho do homem. Dentro do homem vige tudo que existe, seus caminhos, suas estradas. Seus pedaços de borda de mata, suas veredas. Dentro do homem pulsa a força que pulsa em tudo que há. É a vida em si, a existência real da matéria que no homem reverbera, anuncia, em prelúdio último: Eu sou, Eu sou, Eu sou. É nas carnes, é no sangue pulsando, é nas veias, é nas lágrimas, é no luto que toma o corpo como a noite toma a Terra quando o Sol não mais se vê. Tudo pulsa uma mensagem de existência, tudo pulsa uma mensagem revolucionária contra o nada, porque o nada em si não pode haver. O Ser perpassa o espaço. Tudo que é espaço deve de estar a toda hora preenchido. E isso que a tudo permeia, e que tudo pensa, e que tudo vê e que tudo sente, isso - veja bem: isso é o homem, os vazios do homem. O universo em si é apenas o homem demais, o homem demasiado, o homem sem medidas, o homem derramado sobre as suas criações. O coração tem seus mistérios. Coração profundo, cheio de meandros, coração que corre como rios quentes subterrâneos, por dentro das carnes da Terra, e que vem de novo à superfície e que se jogam das alturas das cachoeiras porque está sendo sem medidas:
coração suicida, cheio de saudade. Olhe bem minha querida, como é que eu vou explicar pra você esses mistérios que eu nem mesmo entendo ? 
          Acordei agora, pois que foi. Que tinha dormido, mesmo, anos longos, anos muitos, o sono denso, pesado. Na vereda da noite, nas pinguelas, nos barrancos. A minha alma dormiu o sono noctívago das corujas, dos bois pretos, e dos sapos touro, cantando o seu coaxar, na beira do brejo: murmúrios antigos, silêncios e sons, todos meus, todos nossos. Esse sono ancestral que eu dormi depois de ser menino. Pois que acordei agora, já homem, muito tarde . O diabo é isso: é os avessos do homem. E eu que agora assim me manifesto por causa de uma vida, de um espaço, dessas cobranças muitas. Quem eu era antes ? Quem eu sou agora ? Eu que acordei de um susto sem precedentes na calada da noite da vida estou agora olhando para tudo a minha volta com os olhos abertos, arregalados, e a boca anda infantilizada pela surpresa. Tem que viver, pois que muito, apesar de tudo, tem que viver. Mas como, que mal lhe pergunte ? Esses medos vem atacando a gente de toda parte, na borda
escura das matas fechadas, na beira da Serra brava, de onde vem de direções duvidosas o latido dos cachorros do mato. Como é que eu iria de principiar essa vivência, se nunca antes tinha tentado? Se nunca antes me tinha sido pedido? Eu que fui expulso sem notícia do ventre quente e confortável da vida e ainda não me livrei do líquido amniótico nem da placenta morna e plácida que então me acalentava. Eu que sou de súbito obrigado a lamber essa minha pele nova, esses meus ossos que nem sabem que são feitos de matéria sólida e por isso se prostram duvidosos sobre a estabilidade que deveriam conferir às pernas e aos músculos e a arquitetura do Ser. Eu que invejo as crias das vacas e das cabras que depois do nascimento já aprendem da sua própria natureza a ser bicho em poucas horas. Já nascem mamando e trotando e explorando o espaço verde que lhes pertence porque não tem a mesma dúvida que eu tenho de me perguntar se a natureza é também parte minha ou não. Eu que não sei o que fazer com essas liberdades todas, líquidas, rarefeitas, que me entram pelo nariz queimando os pulmões como a primeira rajada de ar quente que um dia eles respiraram. O meu olhar se funde ao redor da cabeça toda e tudo observa ao mesmo tempo em todas as direções. Para onde ir afinal? O que fazer com essas doses de vida, sendo aplicadas assim, sem nenhuma espera, nas minhas veias? De tanto pensar nisso, adoeci. Foi quando decidi, finalmente, dar ao meu coração essa tal liberdade que ele tanto me pedia. Eu estava na rua, andando sem direção, era um fim de tarde quente num dia ensolarado de primavera. Era um calor ainda tímido, mas bom, propício para estas coisas do espírito. Pensei comigo que, se o meu coração fosse uma pessoa, onde é que ele me levaria ? Saí andando sem direção, dobrando as esquinas a medida que eu bem entendesse e bem quisesse, estava deixando-me guiar por este sentimento que era então novo pra mim. Passei por lojas , galerias de arte, exposições, construções do século passado... tomei um sorvete artesanal, fiquei um tempo observando um gato cinza dormindo, do lado de dentro da casa, encostado numa janela de vidro. Eu estava sendo uma coisa muito única: livre. Que bom que era aquele sentimento, talvez fosse isso que eu deveria fazer, deveria de uma vez por todas deixar o meu coração tomar conta da minha vida e ir me guiando pelas estradas de onde houver. E aquilo foi apenas um exercício, um ensaio. Nos dias que se passaram eu fui me relaxando cada vez mais, fazendo mais silêncio, prestando mais atenção, tentando ouvir o que o meu coração, como uma pessoa, estava tendendo me dizer. Os barulhos dos meus erros eventuais se tornaram cada vez mais baixos. No trabalho por exemplo, decisões mal tomadas, experimentos que não deram certo, tudo isto passou a ter uma importância menos significativa, passou
despercebido. Mas, em contraponto, o meu peito todo florescia por este sentimento único e novo que de mim tomava conta. – O que é que você quer me dizer ? Aonde é que você quer me levar ? Eu perguntava a toda hora, e ele me respondia. Sim, minha querida, coração responde também. Não pela linguagem dos sons mas pela linguagem universal dos vazios de palavras. E a medida que os meus dias se tornaram mais largos uma paz que eu nunca tinha sentido antes começou a se apoderar de mim. Ela ia e vinha como vem e vão todas as coisas boas que se aproximam de uma forma mansa sem pedir permissão. Essa paz, pensei eu. Essa paz só eu é que posso me dar. E por mais que eu nunca me lembre em que momento eu permiti que ela viesse e se instalasse ela mesmo assim veio e se instalou, como uma doença , se espalhando por todo o meu corpo. “Essa paz só eu é que me dou” – e essa mensagem ecoava , longínqua e forte por toda as extremidades do meu corpo e do meu espírito. Eu percebia que chegava mais perto de uma coisa que eu não sei o que é. Uma presença ? Um sentimento ? Do amor, talvez ? Mesmo sem fazer ideia do que era aquilo o sentimento de proximidade da coisa que eu até antes ignorava se fez mais forte. Estava perto, estávamos perto um do outro. Coração corria solto. Eu ia afrouxando as minhas amarras enquanto ele me moldava , querendo sempre mais. Sem que eu percebesse tomou ares de uma força maior. Ficou forte, corajoso, cresceu largo e fez morada em tudo a volta. Comecei a me perguntar onde é que esse coração me levaria, se eu permitisse. Mesmo com receio eu fui dando a ele quantias cada vez maiores desta vida que me pedia. Coração mistério, toma formas muitas. Pois foi isso que ele fez. Cresceu como uma planta cresce, brotando como um tubérculo nascendo das minhas carnes. Cresceu aguado por doses líquidas de liberdade, germinou esparramando suas protuberâncias, suas extensões, seus braços verdes e suas ramificações finas e múltiplas abraçando tal como mãos cheias de dedos tudo que existe. Tangenciando, alcançando por distante, procurando numa luta ferina pela vida conectar-se também, com outras planta-coração. E o que acontece quando, por azar ou por destino, coração cresce sozinho, no meio de um deserto, onde o único pedaço de terra fértil são as carnes
de um homem só ? O que acontece quando essa planta não encontra
outras plantas com quem possa fazer o pacto que sela a união da vida?
Nas pontas que vão crescendo, as extremidades se retorcem um pouco
mais, iniciando um movimento em direção ao desespero. Se espicham,
buscam formar conexões mas não encontram nada. É vazio. É vazio. É
vazio. E por não conseguirem firmar o laço que as fariam beber desta
seiva estrangeira elas imediatamente se tornam ressequidas em
espinhos, tornam-se loucas, violentas e vingativas. Vem procurar no
centro o que não encontraram fora. E começam a se alimentar do núcleo
da qual foram geradas. Este núcleo antes verde e vitalício que ao ser
atacado se torna seco e ressequido, torna-se putrefato. Eu olhava de
fora para dentro. E a visão da luta se tornou clara. Um susto de mim
então se apoderava , e eu me afundava cada vez mais nas areias
movediças das minhas incertezas por não saber de onde o susto vinha.
Faltava-me o ar ? Faltava-me o que ? Era o susto, puro e simples,
crescendo por demais. Incontrolável. Em algum momento eu havia
cogitado a hipótese de não dar tanta força assim a algo que não se pode
controlar. Mas era isso ou sucumbir ao peso da minha própria dor.
Permitir-me esta liberdade tinha sido a última tentativa de uma
resolução deste conflito entre o homem-bicho e o homem-humano. O
que eu deveria fazer? Para onde correr ? Eu observava tudo aquilo. A
luta em si foi o desfecho. Mas, afinal, o que havia de mal nisso? A luta
em si tem sido o desfecho ancestral que a bilhões de anos forja a vida
nas entranhas quentes do caldeirão da terra. Tudo dentro de tudo. Em
um fração de segundo, por um descuido mínimo de atenção, eu me
distanciei do meu próprio sofrimento-sonho. Sim, por um átimo, um
milésimo mesmo, como golfinhos eufóricos vindo a superfície para
respirar uma única rajada de ar quente. E foi isso, esse descuido bem
cuidado, esse presente, que me fez ver o que eu não podia ver antes.
Nesse momento, de pura contemplação, o meu espírito inchou. Era
líquido ? Era vapor ? Era um plasma particulado de exaltação pura ? Eu
via dentro de mim essa luta secular estendendo-se a todos os níveis
deste universo observável. Bonecas russas, pintadas a mão. Uma dentro
da outra e dentro da outra e dentro da outra. Nos átomos, nas células,
nos tecidos e órgãos, no corpo, nos homens, nos bichos e nas plantas, e
nos líquidos e minerais. A luta perpassa tudo que existe. A luta existe
em silêncio como natureza íntima de toda a beleza do mundo. Eu via
agora, pela primeira vez. Que maravilha que era isto apenas: ver. Com
os olhos de fora fechados e os olhos de dentro bem abertos, eu chegava
mais perto dessa espécie de presença, fonte radiosa de luz que brilhava
sem cegar, que esquentava com brandura, que me rodeava com essa
paz, a minha paz, minha mesmo da qual eu tanto tinha saudade. Eu me
deslumbrava com esse entendimento, muito sensível, que jamais por
mim poderia ser tocado, a menos que me fosse oferecido. Esse
sentimento, por aqueles instantes, me libertou, e eu floresci. Era isto
afinal. Era a luta dentro de tudo, era a luta dentro de mim. A luta que
continuaria existindo enquanto a vida dentro de mim pulsasse. Tudo
em paz. Tudo bem. Tudo como deveria de ser. Enquanto eu era
iluminado por aquele entendimento o meu medo se esvaia, era drenado,
gravitacionalmente. Como quando as comportas de uma barragem
estouram porque não estão mais aguentando o peso massivo sobre os
seus portões. O meu medo era um mundo de águas violentas correndo
pra baixo, esvaindo-se, trotando como cavalos de espuma, inundando as
várzeas e campinas, as planícies e os terrenos baixos. Tanto sentimento.
Um alívio ? Um vislumbre ? Mais do que isso. Era bom e calmo. Manso,
sereno. Não haveria como descrever de outra maneira. O sol virá mais
tarde, e ao seu tempo as águas derramadas serão de novo nuvens no céu
, espelhadas na superfície dos lagos , cercados de verde, muitas flores
em volta, árvores altas, antigas, passarinhos cantando. E num banco, de
frente pra tudo isto, eu e você, minha querida Maria. Quem sabe mais
velhos, quem sabe mais maduros. Com as tuas crianças, com as minhas
crianças. Brincando de roda, dançando a ciranda espiritual que precede
a entrada nos portões do céu. Esse céu: vasto, enorme, infinito, correndo
pra todo lado, dentro da gente.



Yuri

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