quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Andréia

Pensou então que merecia pedir mais vida. Porque era tarde e fazia um calor enorme. Mas um calor largo e bom , começando na superfície da pele e se conectando, multidimensionalmente, com tudo que existe. Era já quase noite e a mulher estava na janela. Os olhos miravam as planícies longínquas. A chuva começava a nascer no horizonte dentro dos orgasmos dos trovões. Mas por enquanto só relampejos, jatos de luz. E o calor era ainda mais intenso, forte como é forte a mão de um homem, um calor insaciável tocando nela toda, quem sabe, querendo-a também. Uma gota de suor começava a se formar, pura, límpida, virgem, partindo do nascimento dos seios. E estes, agora mais a vontade, entumecidos, cresciam de puro gozo natural, cheios de malícia, porque eram parte dela.  Andréia então acendeu um cigarro. E porque a boca estava seca abriu uma taça de vinho. Bebeu direto do gargalo. O vidro frio tocava os seus lábios, e o que vinha de dentro da garrafa escorria para dentro dela, refrescando-a.  O que era isso que sentia, todas as vezes que bebia e fumava, assim, só de camisola, na beira da janela? Que liberdade é essa que parecia rondá-la como um animal manso a procura de carinho ? A garrafa de vinho vinha e ia a medida que o cigarro também ia se apagando e outro era acesso. Mais um, mais outro. Os dedos finos e compridos  seguravam o bastão branco em brasa. Ela tragava e o papel se virava em fumaça dentro dela. Que força seria essa, da vida, sempre a consumindo, sempre a testando, sempre tirando um pedaço ou senão tudo dela, pra não devolver mais ? 
            Em epifania se viu na boca de Deus, em epifania e epifania mesmo porque aquilo tudo não podia ser realidade se viu tragada por um universo-Deus-pulmão em que o cigarro era ela.   E ainda por cima, a dor, aguda , no peito.  Que espécie de amor era esse que ela não estava se dando? O que é que significava se amar a final ? Pensou que compreendera. Cuidava de si mesma, ia ao cabelereiro, fazia dieta, praticava exercidos, pensou que sim, que se amava. Mas então porque a dor ? Porque a sensação de abandono? De falta de esperança, de uma falta gigante que ela mesma nem sabia do quê. "Eu quero amar a mim, porque eu sou boa, porque tenho um enorme coração porque sou dedicada a e me esforço para fazer tudo para os outros" . Enumerou qualidades, percorreu adjetivos, pediu a opinião de amigos, escreveu, e tentou lembrar. Não conseguia, entretanto. Não sabia o que estava faltando.

E porque a dor era tamanha e o calor aumentara, pensou que talvez estivesse faltando amar uma coisa que ela não queria ver. Ou mais que isso, que não gostava nela. "É preciso uma coragem enorme para amar quem se é" - ela pensou. E porque pedia então mais vida, sem saber o que a vida era, tirou a roupa e foi para a frente do espelho. Sentou-se numa cadeira. O espelho largo, grande, se esparramava verticalmente na frente dela. Tentou despir-se primeiramente de uma vaidade, mas não era possível. Estava sentada agora nua, com as pernas  ligeiramente abertas, os cabelos negros soltos por cima dos seios. As pulseiras muitas no pulso esquerdo e um cigarro ainda aceso na mão direita. Quem Andreia, quem é que vai te amar se não você primeira ? Mas que amor era esse ? Que amor era esse que ela não entendia? Fazia agora um esforço intelectual enorme para entende-lo mas ele não vinha, não vinha jeito nenhum , a solução, ou o amor  recusava-se a aparecer.  Era como um problema muito difícil de matemática. E porque ela se cansava então de pensar, suspirou. Tragou de novo o cigarro, pensou em desistir, olhou para o chão, e lhe ocorreu que o amor que ela buscaria não era pensado, seria sentido, e seria sem razão nenhuma. Porque era somente assim que ela poderia admitir um amor olhou para a parte do seu corpo que menos gostava. O baixo abdômen, onde alguma gordura se acumulava, não muita, apenas um pouco, nada que pudesse ser notado com um vestido que não fosse muito justo, mas o suficiente para feri-la, o suficiente para incomodá-la. E porque já tinha achado o primeiro defeito continuou investigando-se ainda mais e percebeu que também não gostava do formato do seu nariz: era redondo demais na ponta. E as orelhas, podiam ser menores.  Não, não seria hoje, ela ainda não estava pronta para nascer, a jornada seria longa e a  criança estava ainda prematura . E porque pensou nisso riu. E ao olhar no seu sorriso, gostou, e se apaixonou. Tinha sido pega de surpresa. E porque achou aquilo bonito continuou com a expressão de felicidade no rosto. Não seria agora, não seria assim, tão espontaneamente. Mas ficou com aquela ideia na cabeça, pensou que um dia ela estaria pronta para amar aquela mulher que sorri ao lembrar das suas imperfeições. Pensou que felicidade seria quando pudesse se amar sendo ela mesma. Pensou em quantas pessoas ela também poderia amar por serem elas mesmas. E agora já viajava, percorria o mundo com seu pensamento, abraçava as pessoas pela orla ensolarada das praias, viajava toda a América do Sul de bicicleta, abraçando, amando e rindo. Ia pra China, pros Estados unidos pra Escandinávia, percorria o mundo amando os seres humanos do jeito que eles fossem: imperfeitos. E tudo isto sentada na frente da sua cadeira, em frente ao espelho. Por um momento odiou que houvessem pessoas perfeitas, odiou que houvesse uma ideia de beleza a ser seguida como uma religião qualquer.  Sentiu muita raiva porque queria que houvesse apenas a espontaneidade natural de seres humanos errando, aprendendo, amando e rindo do fato de não estarem prontos para coisa nenhuma. Mas afinal, quem ela odiava ? E porque não queria carregar a culpa de estar odiando uma parte da humanidade assumiu que era ela apenas, que odiava. Ela, mulher humana. Pronto. Tinha passado. Voltara para ao estado natural. Mas, tinha sido um começo bom, tinha sido uma aproximação. Era bom , de vez em quando , namorar essa mulher nua no espelho . Era bom querer a vida mesmo que ela não soubesse o que a vida era.


YVS 06-10-2016

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