quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O piano

                 



                        Eu sei que devia ter escrito este texto antes, mas não pude. Ele ainda não estava maduro em mim. Tudo que eu quero dizer, todas as ideias passando pela minha cabeça enquanto atravesso os dias dentro de um cotidiano denso, as ideias, elas continuam, e eu já não tenho medo de perdê-las uma vez já as sinto como parte do meu espírito, se é que existe algum espírito. Ninguém nunca tinha tocado piano para mim. Eu já tinha ouvido concertos, orquestras, mas para públicos grandes, nada muito pessoal, nem íntimo. Aquele dia você disse que queria me mostrar uma coisa, e me levou ate o terceiro andar da biblioteca, e sentou-se no piano, e pediu que eu me sentasse  perto de você. Faço questão de escrever, desenhar com palavras a cena, porque para mim foi muito bonito, como um daqueles milagres inesperados no meio do vai e vem da vida. Sabe quando uma cena, antes mesmo de começar, você já sabe todo o seu desenrolar? Assim fiquei eu enquanto você tocava. No começo uma dor branda no meio do peito. Eu estava apenas existindo antes que que fosse de repente chamado para ouvir uma melodia. Para momentos como esse a gente tem por vezes de preparar o coração. Nenhuma preparação foi no entanto necessária. A medida que você tocava, e que eu observava os seus dedos caminharem por toda a superfície das teclas brancas, e esse sentimento de dor de viver foi se dissolvendo dentro de mim, e assim me permiti, quase sem conseguir, mas conseguindo, eu me permiti  estar ali e viver sem medo, pelo menos por aqueles instantes. Meus olhos não se irromperam em lágrimas, mas por pouco. Foi algo mais sublime,  um sentimento agudo como uma saudade revestida de esperança, uma coisa boa aqui dentro da gente. Você é tão antigo Adrian, você tem mais de dois mil anos. E o longo rio da idade da tua alma percorria os meus ouvidos enquanto com os olhos fechados eu me deliciava com a alegria que era aquilo. Por não entender ainda a minha existência eu fico observando a tua . Não, não diria que eu te amo.  Amor é outra coisa, o que eu sinto na tua presença é um estado de contemplação atrevida da vida, aquilo que não deve ser olhado porque nos foi proibido, mas mesmo assim nós olhamos.                                    Enquanto o ar da sala se perfumava com as notas de Love History eu fui pouco a pouco perdoando as pessoas por elas não serem como eu gostariam que elas fossem. Eu me tornei simples. Eu, que me julgava tão complicado, tão cheio de pensamentos e ideias, e coisas que outros  não entendem e não fazem,  minhas habilidades cognitivas, modelos metafísicos, construções filosóficas, tudo isso se esvaneceu na simplicidade em que que me coloquei perante a você naquele momento. Não que eu te exaltasse, não que eu te fizesse um mito, porque eu mesmo não acredito em Deus e nem em mitos. Mas o que se sucedeu foi que eu , passivamente, reconheci a sua superioridade sob algum, que eu não sei dizer qual, aspecto da vida. Tudo que eu queria , durante todos esses anos, era me sentir simples. Foi uma libertação pra mim estar diante de alguém que mais complexo do que eu, que apesar dessa complexidade, existia sem dor. Eu falo apenas duas línguas e o meu talento, se é que pode ser considerado um talento, é escrever. Você fala, escreve e lê em 4 idiomas, é dançarino, toca piano, tem muitas amizades, é bem quisto e mais do que isto, existe sem nunca ter se perguntado "quem sou eu", não por falta de ousadia do teu intelecto, mas simplesmente porque o fato de viver , esse fato em si  em você suprime todas essas perguntas sem respostas. A vida em si, a sua vida é a sua própria pergunta e a sua própria  resposta. Relembro como foi confortável permitir-me aquela espécie de burrice de alma por aqueles instantes. Mais bonito do que aquilo foi saber que apenas de sentir teu modo de me inspirar eu continuo gostando de ser eu, de aprender no meu tempo, de julgar belas as coisas que eu acho belas, e principalmente, de uma certa forma, como eu te disse, perdoar as pessoas que não são como eu. Perdoar as pessoas que não fazem perguntas. O que seria de um espetáculo sem a platéia ? Eu entendi a função deles, de espectadores, e para o qual o espetáculo do mundo é o bastante. Entendi o fato de que eles estão bem sob esse posição, sem a luz por vezes intensa dos holofotes, que lhes cegariam a visão. Quanto a nós, se não ocuparmos o palco das nossas vidas, sofreremos. Essa é a natureza humana, e mesmo que eu não possa provar,  algo me diz que essas escolhas foram feitas muito antes de nós virmos, como humanos, para a Terra. Disse que não tento ser diferente porque você me inspira, isso não é totalmente verdade. Eu tento sim, viver sem ter que me perguntar quem sou eu. Eu quero que a minha própria vida seja a resposta. A tua existência é um vestígio da vida desse universo. Eu te criei como um personagem dentro de um livro, e saindo do meu livro eu te encontrei na minha vida, como uma mágico materializando um coelho de dentro da cartola, o resto, é só história. No meu livro eu havia te criado para me ensinar o amor, na vida você veio para que eu aprendesse a não precisar do amor, desse amor miserável, amor mendigo, como um andante que timidamente pede por um pouco de comida. Se é que existe alguma reação química que ocorre entre almas que se encontram, essa foi a nossa. Você me deu a vontade de ser eu sem precisar de ninguém. Uma felicidade sem motivos, diria mais, não uma felicidade, uma alegria mansa, um contentamento de se aceitar como se é e nem se perguntar muito sobre isso, ser apenas, orgulhosamente, parte do espetáculo da vida.


Obrigado por isso,


Yuri Volpato, Canadá, 21 de Fevereiro de 2014

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